segunda-feira, 15 de setembro de 2008

UM DRAMA DE GERAÇÕES EM VÁRIOS ACTOS



“Chamo-me Miguel e tenho onze anos. O que me levou a escrever não é contar a minha curta narração de vida, mas a história em que estou envolvido e dela, como actor, faço parte. Como se duma peça teatral se tratasse, sou o mais novo, o benjamim da família. O meu irmão mais velho tem 22 anos e o do meio 16 anos.
Tudo começou há vinte e poucos anos, quando os actores principais, os meus pais, depois de dois anos de namoro, “deram o nó” na principal igreja da cidade. Como devem calcular não pude estar presente, mas contaram-me tudo. Vieram amigos de longe e foi uma alegria grande para os meus avós maternos e paternos.
A minha mãe, então com vinte e cinco anos, irmã de mais oito, embora vivessem na cidade, era muito pobre. A preocupação do meu avô, homem extraordinário, com um coração de ouro, que conheci muito bem, pai da minha mãe, foi sempre apenas e só o bem-estar dos seus nove filhos. Na sua casa nunca houve luxos, nem grandes farturas, mas nunca a fome por ali passou. Por lá, como no mais justo tribunal, tudo era milimetricamente dividido irmãmente. Quando morreu há oito anos, tinha eu três anos, não deixou terras nem ouro, antes deixou baús cheios de boas recordações em todos os meus tios e uma amizade fora de comum entre todos eles. Como é tão normal nestes casos, onde a ganância individual impera, em conflitos de partilhas, substituindo os laços de amor pela raiva, aqui, como nada de material havia para repartir, dividiram o espírito de amizade recíproca entre todos eles.
O meu pai, nascido na Beira Alta, mais novo que a minha mãe cinco anos, também filho de gente muito pobre, os meus avós, mal fizera 12 anos, e farto de uma vida de sacrifícios, sem nada ter a não ser uma ambição desmedida, um dia tomou a camioneta de carreira e, sem ninguém para o amparar, fugiu e veio trabalhar para a cidade. Naturalmente, se a vida foi sua madrasta, o obrigou a trabalhar duro em vez de brincar, lhe deu o pão, em côdeas, que o diabo amassou, é evidente, pelas agruras do destino, que o meu pai tornou-se um pouco egoísta e frio. Nunca senti muito amor da parte dele. Mas, podem crer, não o acuso de nada. Afinal, se não recebeu carinho como poderia ele dar-me algo que não conhecia?
Já a minha mãe, contrariamente, como contei, nasceu e cresceu em berço de amor. No entanto, no rancho dos nove irmãos, foi sempre diferente de todos os outros. Isto é, mais “malhadiça”, muito teimosa! Ao longo da sua vida, viveu sempre com um complexo de inferioridade: sempre achou que a sua mãe, a minha avó, gostava menos dela do que dos outros irmãos e nunca lhe dava o que ela tinha direito. Mesmo não sendo verdade, nunca nada a convenceu do contrário, fosse o melhor brinquedo ou um sentido gesto de amor mais profundo. Era assim e pronto!
Por acasos do destino, quando eu nasci, em 1997, a minha mãe apanhou uma depressão pós-parto –vocês sabem o que é não sabem? Eu mal sei contar por palavras mas, como senti e continuo a sentir esta “coisa”, penso que vos consigo explicar: é um período de risco psiquiátrico, aumentado pela fragilidade num ciclo de vida da mulher. Consiste numa manifestação depressiva de intensidade variável, em que o factor principal é a quebra do vínculo afectivo entre mãe e filho, podendo interferir nas suas futuras relações interpessoais. Se calhar tive azar, não sei! A verdade é que, hoje, talvez porque nunca fui amado, sinto que não fui desejado. E como devem calcular, sinto-me infeliz. Curiosamente, num ambiente totalmente contrário ao dos meus pais. Há coisas do arco-da-velha, eles, tendo carinho, foram infelizes por, em crianças, nada terem materialmente, eu sou infeliz por me terem dado tudo, muito mais do necessário, e, custando tão pouco, não me ofereceram o principal, que seria o seu amor. Ainda sou novo, mas já me apercebi que esta vida dá tantas voltas. Parece que o destino, ressabiado com as gerações passadas, teima, numa vingança obsessiva, em castigar alguém no presente. Para má sina minha, ao que parece, calhou-me, em sorte, a mim.
Vou então continuar, nem o facto de eu ter nascido serviu para aproximar os meus pais. Ao longo da minha curta existência passei a sentir ser, metaforicamente, o psiquiatra dos dois. De um ouvia cobras e lagartos do outro. Nenhum deles, nunca, se preocuparam em me perguntar, a mim, o que eu sentia.
O meu pai, não sei se para abafar as mágoas que o corroíam por não ser o progenitor e marido que devia, ou outra coisa qualquer, numa escalada sem precedentes, trabalhando noite e dia, alcançou um patamar de tal forma incomum, que lhes permitiu ter mais que uma casa, vários carros, motas e tudo, materialmente, o que o dinheiro pode comprar.
Há dois meses, depois de uma guerra sangrenta de anos, dividida entre balas de amor-ódio, em casa com pão mas sem razão, assinaram finalmente –pensava eu- o armistício, como quem diz o divórcio. Como nenhum deles verdadeiramente queria a separação de facto, perante o juiz, estranhamente ou talvez não, comprometeram-se a, como se nada se tivesse passado, embora separados de direito, a vivermos todos na mesma casa e em comum cuidar de mim. Estava de ver que não dava certo.
Há dias, na minha presença, a minha mãe partiu uma cadeira na cabeça do meu pai. Este retribuiu e ambos, seguidamente, foram para a polícia pedir protecção, por agressão, em cenário de violência doméstica.
Hoje, a minha mãe, fazendo de conta de que eu e os meus irmãos não existimos, furibunda e carregada de ódio, foi às finanças queixar-se do meu pai por…fuga aos impostos.
Como vai acabar a peça? Qual é o meu papel de criança desprotegida neste cenário de guerra, nesta ambição desmedida, nesta vida estúpida e fútil, qual vai ser o meu futuro? Não sei! Provavelmente muito mal. Aguardem pelo epílogo.”

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