sábado, 13 de setembro de 2008

BAIXA: A MENINA DANÇA?




É sexta-feira, são 23 horas. As ruas estreitas do centro histórico estão praticamente desertas. Não fosse o estridente miar de um gato num recanto mais obscuro, que certamente se assustou, e, dir-se-ia, não ter vida. Por entre uma amálgama de estabelecimentos, com inscrições nos vidros, de “Liquidação”, outros tantos com papeis colados a indicarem já terem claudicado, e, por entre os restantes ainda resistentes, muitas montras sem luz, como se, com este gesto de poupança forçada, quisessem, em apelo redobrado de SOS, neste protesto difuso e silencioso, através da imagem da coisa, substituindo o desânimo do obreiro, mostrar aos poucos noctívagos passantes que a Baixa necessita de ajuda. Precisa de socorro exterior, através de medidas políticas concretas, e interior, ou seja, quem trabalha na Baixa, numa recuperação da auto-estima, tem de acreditar na sua revitalização.
Das muitas casas de restauração hoteleira, a esta hora, resiste o Café Santa Cruz, O Salão Brazil, o Restaurante Praça Velha e a Taberninha.
Um casal de turistas, o homem de bermudas e camisa Taiti, passeia despreocupado com a máquina fotográfica a tiracolo no Largo do Poço. Neste largo, tinham acabado de jantar no Salão Brazil. De repente param estáticos. Parecem confusos. Do seu lado esquerdo, da Praça 8 de Maio, ouvem rimas da “Moleirinha”, vindos de um grupo de Folclore. Do seu lado direito, da Praça do Comércio, em contraste de estilos musicais, vêm sons ritmados de um conjunto de musica de baile, do “Só mais um beijo”, dos “Irmãos Verdades”. Um pouco aturdidos, em saber por qual optar e, admirados por, num curto raio de cem metros, as músicas, como batalha sonora, em luta fratricida, parecerem querer aniquilar-se uma à outra.
Seguiram então em direcção à Praça 8 de Maio, onde, naquele magnífico cenário Românico, actuava o rancho típico e assistido por escassas dezenas de pessoas. Depois de tomarem um café no Santa Cruz, atravessando a deserta “calçada”, rumaram em direcção à Praça do Comércio.
Nesta praça, contrariamente à anterior, o ambiente estava animado. Numa recriação de um baile à moda antiga, algumas centenas de pessoas assistiam à actuação do conjunto trio “Mar e Samba”. Num espaço de dança improvisado, algumas dezenas de pessoas manuseavam o corpo. A senhora turista, aos sons de “Desejo meu”, não resistiu e puxou o marido para a roda. Ao seu lado, o sexagenário e residente na Baixa, o Neves mostrava os seus dotes artísticos de dançarino, fazendo lembrar Richard Gere, em “Dança comigo”. Quase a tocar-lhe o ombro, o Rui, já bem entrado nos “entas”, com uma careca de invejar e uns bem estimados cabelos brancos, escultor conhecido, entre a Conchada e o centro histórico, de camisa completamente encharcada, sem perder uma moda, num afã, rodopiava na roda e mostrava aos espectadores que o seu talento de artista ia muito para além do que se conhece dele. No outro lado a Ifigénia, que “trabalha” na avenida, meteu folga e, derretida, nos braços do seu verdadeiro amor, mostrava que a dança não escolhe classes, não discrimina ninguém e pode ser a chave da inclusão. A seu lado, o Almerindo, um polidor de esquinas profissional e que nas horas vagas faz uns biscates no gamanço, tentava engatar uma brasileira. Num multiculturalismo sem precedentes, entre cores de pele e turistas de várias nacionalidades, o Anastácio e o Jacinto, cabo-verdianos, ensaiavam uns passos de dança à espera da “coladera”.
Ao lado, quem ganhou a noite foi a senhora Maria, casada há quase 50 anos com o Mário. Este, ao som de “aperta, aperta”, como “tennager” inconsequente, chegava a si a “ti” Maria, de tal modo que esta, afogueada, parecia ter recuado no tempo e ter a seu lado um homem novo. Mas o melhor estava para vir. Quando o paquistanês Ibraim, com um braçado de flores, naturais e viçosas, estandardizadas em celofane, chega junto deles e pergunta: “qué frô?”, então não é que o Mário, num acto nunca visto aos olhos da sua “cara-metade”, puxa por cinco euros e oferece-lhe uma rosa vermelha? A senhora Maria, ali, naquele espaço de paz e concórdia, entre remediados e carenciados, chorou de felicidade.
No palco, interrompendo a música, alguém se preparava para falar. Ia intervir o presidente da junta, o Carlos Clemente. O nosso casal de turistas, mal falando português, perceberam, pelos gestos, que, para além da timidez, é um homem de acção. Mesmo assim ainda conseguiram compreender uma ou outra frase, como por exemplo, “nós gostamos muito da Baixa”. Repararam, pela sonora efusão de palmas, que todos estavam de acordo. Quando o Clemente desceu do palco, como político em campanha e bom anfitrião, observaram que se dividia em dançar ora com a boazona turista brasileira, ora com a “menina” Etelvina que, pelas rugas, já perdeu a conta às primaveras que tem.
Era 1 hora da manhã quando encerrou o baile. O nosso casal de turistas, em despedida, foi ter com o Clemente e, juntando os gestos a um português “macarrónico”, disseram-lhe: “Continua. Nós gostar muito de tu festa, pá!”.

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