quinta-feira, 18 de setembro de 2008

O HOMEM QUE FABRICAVA SONHOS




(O CENTRUM CORVO, NA RUA DO CORVO, EM COIMBRA)


O “Centrum Corvo” é talvez o estabelecimento mais bonito da Baixa da cidade de Coimbra. Fica na Rua do Corvo, a dois passos da Igreja românica de Santa Cruz. É uma loja de artesanato. Pois! Mas não é uma loja qualquer, parecida ou igual a tantas outras. Este estabelecimento é um “must”. A sua decoração confere-lhe uma autenticidade e transforma-a no paradigma daquilo que se entende como a verdadeira loja do comércio tradicional.
Quem vê a fachada, com as montras de olaria e vários bordados de boa qualidade feitos à mão, não imagina a riqueza histórica e patrimonial que o seu interior encerra. Toda a decoração assenta nos idos anos de 1900. Os seus móveis, lindíssimos, são mesmo autênticos. Foram feitos de encomenda para uma mercearia fina na época. Durante várias décadas este estabelecimento de açúcar e arroz a retalho, retirado das fundas tulhas e pesados ao quilo, funcionou em pleno. Como outros estabelecimentos de renome na cidade, era famoso o seu café “arábica”, moído na hora e à frente do freguês.
Por meados do século XX foi trespassado para o ramo de tecidos a metro. A Rua do Corvo era identitária pelos seus imensos estabelecimentos de retalho de tecidos pendurados na frente das lojas. Hoje, dentro destas características, conservando a traça antiga, resta uma única nesta rua, que um destes dias falarei dela aqui.
Há cerca de uma dúzia de anos o então ainda proprietário da loja de tecidos a metro, que, para além de saber ganhar dinheiro, não tinha nenhuma sensibilidade, certamente embarcando na actual filosofia de que as lojas tradicionais antigas, carregadas de memória, estão obsoletas e devem substituir toda a ambiência de antanho por uns modernos balcões estandardizados e ornamentados a plástico ou alumínio, foi ter com o dono do prédio e, rispidamente, em jeito de ultimato, disse: “Eu vou modificar o interior da loja e quero tirar os imbecis móveis antigos. Quero substitui-los por uns mais bonitos. De modo que arranje sítio para eles se não vão para queimar!”.
A pessoa que ouviu isto, o dono do prédio, o meu amigo António Cerveira, era a pessoa mais sensível que conheci. Perante esta barbaridade, ficou chocado. Para além de ser um homem de cultura, profundamente vinculado a tudo o que tivesse a ver com a memória, emotivamente, como cordão umbilical, estava profundamente ligado àqueles móveis. O estabelecimento de décadas de mercearia fora de uns seus primos. No meio de rebuçados e azeite ao litro, ali cresceu, se fez homem, se fez médico e partiu para a capital, onde exerceu psiquiatria até se aposentar. Há cerca de uma dúzia de anos, regressou novamente a Coimbra.
Como entretanto nos conhecemos, depois de, a seus olhos, ouvir o sacrilégio do homem dos trapos a metro, preocupado, meio atordoado, veio ter comigo e contou-me o que lhe estava a acontecer. “já viu Luís, uma preciosidade daquelas e aquele camelo quer queimá-los? Você não terá uma garagem disponível em que mos possa resguardar até eu lhe dar um rumo? Estes móveis (cinco, com dois metros e oitenta de altura) significam muito para mim!”.
Durante cerca de dois anos fui fiel depositário deles.
Um dia chegou ao pé de mim, naquele seu ar de menino bem comportado, que escutava mais do que falava, talvez defeito necessário da sua profissão de psiquiatra, e interroga-me: “o que acha daquela minha loja vir a ser um estabelecimento de artesanato?”. Disse-lhe o que achava e fiquei com a pulga atrás da orelha. Passados meses, com os olhos a brilhar de contentamento, chegando ao pé de mim, disse: “fiquei com a minha loja. Consegui reavê-la e pôr de lá para fora aquele estupor”. Vim então a saber que por causa dos móveis antigos, do sentimento que os ligava, comprou de trespasse o negócio, em que, enquanto edifício, era sua propriedade e para o reaver pagou cerca de trinta mil contos (hoje cerca de 150.000Euros). Se para o cedente foi o negócio da sua vida, para o adquirente, o meu amigo Cerveira, foi a vida por um negócio.
Durante vários anos, com um fôlego invejável, com espírito de menino, um sonhador utópico, no seu estabelecimento de artesanato, decorado completamente à imagem da antiga mercearia dos primórdios do século XX, este homem foi profundamente feliz. Tenho a certeza. Ele ia a todos os pormenores. Até a imagem de um corvo, que existia na fachada da antiga mercearia, ele mandou fazer de propósito e colocou-a na parede exterior.
Faltou-lhe tempo para realizar os mil planos que tinha em carteira. Que saudades que tenho dele! Quando chegava, pé-ante-pé, ao pé de mim, já sabia que ali vinha coisa. Uma ideia nova, certamente pensada durante a noite. Nas suas constantes interrogações: “e se fizesse assim? E se pusesse no “Centro Corvo” um centro de produtos endógenos tradicionais? E se fizéssemos um protocolo com a Diocese para as igrejas estarem abertas à noite? E…se…se?”.
Infelizmente, em Julho do ano passado, o homem com oitenta anos, que, na sua destreza mental e agilidade física, parecia um rapazote, que tinha uma força anímica fora do comum, o sonhador, o fabricante de sonhos, como luz que fenece e, repentinamente se apaga, finou-se. Imaginariamente, teria sido um raio que, vindo do espaço, pôs fim àquela força motriz impressionante. Perdemos todos. Eu perdi um grande amigo e a Baixa perdeu um grande impulsionador e inconformista, um grande defensor do comércio de rua. Um lutador de causas.
Se puder visite o “Centrum Corvo”. Se gostar compre uma boa peça de artesanato, mas, sobretudo, aprecie aquela jóia decorativa de novecentos. Embora não o sinta, não o veja, pode ter a certeza que o espírito do meu amigo Cerveira está lá. Em paz, do alto onde se encontra, continua a zelar pelo amor do resto da sua vida.

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