terça-feira, 16 de setembro de 2008

HISTÓRIAS DA MINHA ALDEIA (32): O MEU AVÔ CRISPIM


(Imagem da Web)




 Já o contei em anteriores apontamentos, quando entro numa qualquer carpintaria ou serração, pelo odor a serradura, numa viagem alucinante, através dos anéis do tempo, chego à memória do meu avô Crispim. Curiosamente, apesar de eu ter já cerca de doze anos quando ele faleceu, em finais de 1968, em boa verdade, não me consigo lembrar das suas feições com clareza.
Recordo-me do meu avô, fosse verão ou inverno, sempre vestido com samarra de gola de pele de raposa, boina na cabeça, e as pernas sempre “aparelhadas” com plainas de cabedal, como se ainda estivesse na Primeira Grande Guerra. Fumava tabaco de enrolar da marca Kentucky. A sua figura imponente, alta e esguia, de dedos longos, de artista, e as suas constantes mentiras, efabulando qualquer história. “Pintava” a seu jeito uma qualquer narração com a mesma facilidade que um qualquer seu vizinho assobiava uma “moda” de qualquer canção. Veio a passar essa sua peculiar forma de ser ao seu filho varão, o meu saudoso tio “Manel”, também já desaparecido do nosso mundo dos vivos.
Segundo informações que recolhi em Várzeas, o meu avô, em questões de labor, era “pau para toda a colher”. Pegava em qualquer trabalho, até porque os tempos eram difíceis e havia na prole, para além da minha avó Madalena, mais quatros bocas para alimentar.
O seu verdadeiro gosto ia inteirinho para a música. Num tempo em que para além da carência de facilidade de aceder ao ensino musical tudo faltava, quem quisesse seguir a “veia” musical teria de se “desenrascar”. E foi o que o meu avô fez. Conjuntamente com o “Manel Serrado”, na “caixa”, o Valentim Gonçalves, na concertina, e ele no bombo, formaram os “Gaiteiros de Várzeas”. Durante largos anos actuaram em toda a freguesia de Luso, mas, alegadamente, onde eram mais solicitados seria para as escamisadas (ou descamisadas, também assim conhecidas). Citando o meu amigo Alcides Rego, do Buçaco, estas escamisadas do milho (retirar manualmente a “camisa” à espiga) eram serões, para além de generalizados, muito apreciados e nas aldeias ocupavam entre as suas gentes um lugar privilegiado. “Às desfolhadas concorriam amigos, vizinhos e familiares, bem como rapazes e raparigas, que animavam o trabalho com canções, adivinhas, lendas, lengalengas e pequenos jogos. A própria escamisada era um jogo permanente em que se procurava encontrar o maior número de espigas vermelhas (milho rei), o que lhe permitiria beijar todos os elementos do sexo oposto. Se a espiga fosse riscada seria permitido apenas um abraço. No final das escamisadas era habitual fazer-se um bailarico”.
Para além desse seu talento inato, o meu avô tinha também alguma queda para comerciar. Como o seu filho mais velho “Manel” foi, durante muitos anos, cozinheiro no Restaurante “Pedro dos Leitões”, em Sernadelo, junto à Mealhada, então e mais que certo, talvez pela ligação ao filho, vender-lhe-iam a fressura -elemento das vísceras do animal e utilizado na alimentação- certamente mais em conta. Durante muitos anos, com uma bicicleta “Albata”, com um recipiente em lata, atado no assento traseiro, o meu avô Crispim correu a freguesia a alienar fressura. Quando esta faltava vendia sardinha “salgada”. No princípio da semana levava ovos, comprados pela minha avó Madalena no Salgueiral, e na volta trazia do “Pedro dos Leitões” uma grande quantidade de fressura, que seria conservada em sal até ser comercializada de terra-em-terra.
Quando a minha avó faleceu, por volta de 1961, o meu avô desistiu das vendas de carne e peixe e virou-se para a produção de carvão. Comprava a madeira de medronheiro e betoino, que são lenhosas compactas e muito duras, fazia um buraco na terra e a seguir, com barro e pedras, construía um grande forno com uma pequena abertura. Depois colocava os cepos uns em cima dos outros lá dentro e incendiava-os. Durante vários dias, em combustão lenta, os troncos transformavam-se em carvão vegetal. Já pronto e como bem essencial para a indústria ia vende-lo ao Luso, às lojas dos senhores Adelino Carvalho, Aníbal e Carlos Castro.
O meu avô Crispim teve em vida dois grandes sustos. Um, sofrendo na pele, apercebeu-se bem dele. Outro, já moribundo, não se deu conta.
No primeiro, lembro-me bem dela na sua mesa-de-cabeceira, ele tinha uma pistola de chumbos. Um dia, na sua casa, tendo-a carregada em cima de uma mesa, entrou o meu tio Albertino, seu filho também já falecido. Começaram a conversar, palavra puxa palavra, e às tantas o Albertino, em jeito de curiosidade e sem premeditação, pegou na pistola, apontando-lha, deu ao gatilho e… ”ai meu filho da puta, que me mataste” –gritou o meu avô, atingido pelos chumbos. O meu avô ficou bastante ferido. Mesmo sendo macaca, a sua sorte é que foi apanhado na fronte e na cabeça. Quem lhe valeu, como seu anjo da guarda, foi a minha tia Dorinda. Para além disso, para evitar complicações com a polícia, até se restabelecer, durante vários dias, esteve retido em casa e mal saiu à rua.
O outro susto, que já não se deu conta, tem algo de tétrico. Como estava às portas da morte, com um pé lá dentro e outro fora, correu o boato de que tinha expirado. Era hábito a sua casa, durante todo o dia, manter-se de porta aberta. Como quem cuidava dele era a minha tia Dorinda, quando foi vê-lo, entrou e deparou-se-lhe um homem com uma fita métrica na mão a tirar-lhe as medidas ao corpo. Era o Salvador, o “manco”, que era informador do “Quim Magro”, o “doutor caixão” e vendedor de urnas do Luso, que ouvindo o boato e antes que alguém se antecipasse começou logo por lhe fazer as medições com ele ainda vivo… para o “sobretudo”. Outros tempos, outras vidas, saudades que restam na memória.


2 comentários:

Anónimo disse...

parabéns plo texto tive muito gosto em ler estas frases como todas as outras k se referem aos nossos antepassados k jamais eskeceremos.um abraço amigo do edgar.

LUIS FERNANDES disse...

MUITO OBRIGADO. VOLTE SEMPRE. Terei o maior gosto em recebê-lo.
Um abraço.
Luis Fernandes