(IMAGEM ROUBADA AO SOLDADO, ENQUANTO ELE ESTAVA DISTRAÍDO COM A CRIANÇA)
Tinha eu então, feito há pouco, 17 anos quando fui trabalhar para o comércio. Até aí, e durante meia dúzia de anos, eu estivera na hotelaria, mas não gostava muito. O meu sonho era laborar ao balcão de uma casa comercial. Para além disso, encantava-me o horário e o facto de não trabalhar aos sábados à tarde e durante a semana só até às 19 horas.
Então, tendo acabado de fazer a época de verão, de dois meses, como empregado de mesa, no “Arco Íris, o melhor restaurante da praia de Mira por essa altura, falei com o “ti” Manel Petinga”, um cozinheiro muito popular na cidade, que conhecia meio-mundo, para ver se me arranjava uma loja para eu trabalhar como marçano.
Foi assim que, depois de ir falar com o senhor José dos Santos Coimbra –já falecido-, nesse mês de Outubro de 1973, me apresentei ao trabalho na Casa São Tiago, em frente à igreja com o mesmo nome, na Praça do Comércio. Fui ganhar 1250 escudos por mês (hoje 6,25 euros).
Foi assim que, depois de ir falar com o senhor José dos Santos Coimbra –já falecido-, nesse mês de Outubro de 1973, me apresentei ao trabalho na Casa São Tiago, em frente à igreja com o mesmo nome, na Praça do Comércio. Fui ganhar 1250 escudos por mês (hoje 6,25 euros).
Como ainda não eram 9 horas, hora da abertura do estabelecimento, e os restantes empregados ainda não tinham chegado, estava eu a falar com o patrão, quando entrou um cliente e disse que precisava de ver tecidos a metro. Logo ali, sem que eu percebesse alguma coisa de tecidos, o senhor Coimbra mandou-me atender a senhora. E lá fui eu mostrar panos a metro, estando para os rolos de tecido, certamente, da mesma forma que um elefante estará numa loja de porcelanas. A verdade é que lá me desenrasquei e, mesmo sem perceber nada de corte, lá vendi ao cliente.
Naquela firma, nessa altura, constituída por duas lojas, trabalhavam mais de uma dúzia de empregados. Lembro apenas alguns, o Ramiro, o António, o Carlos, o Rui, o Gonçalves, a Adélia, O António Gomes António e a esposa, o Sereno, a Domitília, na costura com mais duas costureiras, e outros que não lembro. Certamente porque havia pouco dinheiro, entravam poucos clientes. Mas, para o patrão, a cada cliente entrado, obrigatoriamente, deveria corresponder uma venda. Para o velho Coimbra não era admissível que um presumível comprador entrasse e não comprasse numa catedral de três andares como era a Casa S. Tiago, cheia de roupas de homem, senhora e criança. Na cave era a secção de homem, impressionantemente recheada de fazenda: para cada número de calças, sem exagero, havia 30. Para cada tamanho de colarinho de camisa, umas vinte. Fatos de homem, para cada número haveriam mais de vinte e entre várias cores.
À frente daquela divisão, e sem dúvida nenhuma, o melhor vendedor que alguma vez conheci: o Gonçalves. Era extraordinário –ainda é vivo e habita em Pereira do Campo. Tinha um modo especial de tratar o cliente. Era como se cada pessoa que caísse nas suas mãos ficasse hipnotizada e ele manobrasse o cliente a seu bel-prazer. Tinha sempre argumentos prontos. Era um “chato” subtil. Como era, sem dúvida, o melhor de todos, era olhado por alguns, com inveja e desconsideração.
No rés-do-chão era a secção de senhora. A Adélia, uma rapariga de vinte e poucos anos, mulher de rara beleza, um rosto lindo, sempre acompanhado com um sorriso aberto, e emoldurado por uns bem cuidados cabelos compridos negros, parecia uma cigana. Esta vendedora, entre as mulheres, era um espectáculo. Quem lhe caísse no regaço, não havia hipótese, era uma venda pela certa, para contentamento do velho Coimbra. O encarregado geral era o senhor António, homem calmo, que na sua descontracção geria todos aqueles feitios de personalidades várias. Inclusivamente, sendo o patrão um exaltado, recorrendo muitas vezes ao insulto verbal, sobretudo quando algum empregado não vendia, era o gerente que ia por detrás e, com gestos e palavras, tentava concertar a auto-estima do admoestado, que aparentemente não teria concerto e estava de rastos. Era uma espécie de jogador, que, pela força da experiência empírica, conhecia psicologicamente os humanos como ninguém. Apenas pelo trato de respeito, na sua assertividade, sabia fazer-se obedecer sem grande dificuldade. Lembro o Carlos, nessa altura, ainda rapaz, um homem de princípios, com uma lealdade a toda a prova. E os outros empregados, cada um com sua maneira de ser.
Os restantes pisos eram compostos por armazém e várias secções de criança.
Passados seis meses, aquela manhã de Abril de 1974, se exceptuarmos uma interrogação do género “parece que houve uma revolução em Lisboa. O que é uma Revolução?”, foi igual a tantas outras partes de outros dias iguais. Tirando o facto de saber apenas quem era o Presidente do Conselho, Marcelo Caetano, que via e ouvia na televisão numas chamadas “Conversas em Família”, eu não sabia mais nada. Mas, pelo que me apercebia, na Casa S. Tiago, a ignorância era geral. Todos estávamos apenas preocupados em ter trabalho. Haveria duas excepções: o patrão, José Coimbra, e o Rui, algumas vezes, mais tarde, apelidado de comunista pelo primeiro, ainda que com algum respeito à mistura.
Então, nesse dia 25 de Abril, nessa grande casa comercial, havia três cenários. Um de apatia e desinteresse pelo que se estava a passar pela maioria dos empregados, como eu, que desconheciam o que era uma revolução. Outro de contentamento, manifestado pelo júbilo constante e até incomodativo do Rui. E outro, ainda, de profunda apreensão do patrão. Tirando estes factos, naquela casa comercial, foi um dia igual aos outros. Quando saí às 19 horas do trabalho, lembro-me que a algazarra e o barulho nas ruas já era uma constante.
Nos dias subsequentes, começou a ouvir-se falar de “comissões de trabalhadores”. O velho Coimbra, um dia, reuniu todos e, de voz grave e pulso de ferro, disse que “ali, naquela sua casa, quem mandava era ele e tudo iria continuar assim. Apesar de o país estar a ser tomado pelos comunistas –que haveriam de desgraçar esta Nação-, o futuro era a Social Democracia, e, mais concretamente, o PPD, de Sá Carneiro –partido político que nascera no ano anterior, ainda no âmbito do Estado-Novo-, e que começava a ser a única alternância ao PREC, Processo Revolucionário em Curso”.
Como a política nunca até aí entrara nas minhas preocupações, assim continuei. Tirando algumas transformações, como por exemplo, até aí lia às escondidas umas revistas do “Cine Revue”, do Daniel Tibério, meu amigo e mais velho do que eu, que, como fazia muitas viagens a Lisboa, adquiria-as lá e depois emprestava-mas. Era a ver umas fotografias de mulheres francesas em fato de banho e com colos generosos que os meus olhos saltavam das órbitas de excitação. Assim que se deu a Revolução dos Cravos, era uma maravilha. O que até aí era proibido, passou a ser gratuitamente oferecido em tudo o que era quiosque da cidade. Eram fotos de mulheres nuas em tudo o que era canto. Era o Vilhena, com a “Gaiola Aberta”, era a até aí a recatada “Plateia”, que de repente passa a apresentar mulheres em pelota na capa. Era o “Olho Vivo”. Eram as revistas da “Gina”, com histórias de sexo explícito em imagens . Para além de outras. De repente, para minha satisfação, o país transformou-se num imenso bordel de venda de sexo em fotografia e em cinema. Se eu já era maluco pior fiquei. Estou convencido que nunca mais tive concerto. Quem passa por uma revolução sexual destas fica apanhado para toda a vida.
Outra grande transformação importante que me trouxe a Revolução de Abril foi o facto de os ordenados mínimos, por decreto governamental, passarem para cerca de 3 mil escudos. Ou seja, mais do dobro do que eu ganhava.
Então aconteceu uma coisa extraordinária. Como passou a haver mais dinheiro em circulação, as pessoas compravam tudo. Tudo se vendia. Tudo se esgotava rapidamente. A procura excedia a oferta. Nas lojas da Baixa, nessa altura o centro do centro do comércio tradicional, havia filas para comprar. As ruas estreitas, já de si, pelo afluxo normal cheias de gente, passaram a ficar superlotadas. Era impossível transitar nestas ruas. Andar aqui só se fosse a passo de caracol. Sagaz como era, o velho Coimbra anteviu que o comércio iria atingir o zénite nesses anos que se aproximavam. Continuou a investir em mais lojas e prédios. Quando me despedi, em 1982, a firma José dos Santos Coimbra tinha cerca de quarenta funcionários. Hoje, para quem quiser tirar uma lição, a última loja deste grande e desaparecido empresário encerrou há cerca de um ano. Estará para se saber se o apogeu e queda desta grande firma comercial teria sido naturalmente, em virtude de ciclos económicos menos favoráveis, ou, antes pelo contrário, a causa teria efeito nos ventos mal controlados da Revolução dos Cravos.
*TEXTO ESCRITO PARA A "FÁBRICA DE HISTÓRIAS" SOB O MOTE "A REVOLUÇÃO DOS CRAVOS"
http://fabricadehistorias.blogs.sapo.pt/46853.html
*TEXTO ESCRITO PARA A "FÁBRICA DE HISTÓRIAS" SOB O MOTE "A REVOLUÇÃO DOS CRAVOS"
http://fabricadehistorias.blogs.sapo.pt/46853.html
8 comentários:
Pela Liberdade!
Algumas pessoas,sinceramente, enfastiaram-me por completo. Fazem uma oposição interna e externa engraçada, igualmente betinha e com muita pena do pessoal da cultura, dos pobrezinhos, doentes e desamparados, género substitutivo político da caridade cristã porta-a-porta. E os comerciantes? Os empregados do comércio? Os sem-abrigo? Os moradores da Baixa? As casa degradas que todos dias metem quem passa em risco? Nunca os vi a tomarem uma posição pública em relação a essas situações, gastam o tempo na ala intelectual e no controleirismo. São bons rapazes, no fundo e sem qualquer ironia de espécie alguma. Só estou mesmo farto de algumas pessoas, porque se tornaram numa moda e eu não tenho qualquer paciência para pessoas intelectualmente superiores; antes a caridade mais assumida da direita que esta de esquerda de superioridade coitadista. São úteis como oposição devido ao seu alarido.
Jorge,já escreveu algumas coisas com que concordei,mas nunca concordei tanto como hoje:«...antes a caridade mais assumida de direita que esta esquerda de superioridade coitadista.»,é que sempre me incomodou o sentimento de superioridade e de donos da razão e unica verdade de alguns pseudos intelectuais de esquerda.Principalmente nesta altura do ano.
Marco
http://www.100nada.net/analise-politica-100nada-2/2009/02/01/
O BE, sinceramente, enjoei por completo. Desta vez juro que, nem por ser do contra e para evitar a maioria absoluta, desço a rua indecisa entre esse e o PP. Ambos fazem uma oposição engraçada, as duas igualmente betinhas e com muita pena dos pobrezinhos, doentes e desamparados, género sucedâneo político da caridade cristã Porta-a-Porta. São bons rapazes, no fundo e sem qualquer ironia de espécie alguma. Só estou mesmo farta do BE porque se tornou uma moda e eu não tenho qualquer paciência para bairro-altismos intelectualmente superiores; antes a caridade mais assumida da direita que esta de esquerda de superioridade coitadista. Jamais em tempo algum quereria ver qualquer deles no governo, seria a desgraça completa, mas são úteis como oposição e fazem uma algazarra mais eficaz que o PSD, ocupado que está nas questões internas de sempre.
Sem duvida Marco, um excelente comentário que adaptei ao que sinto, podia ter sido bem mais explicito, usando um chavão bem conhecido" chamar os "bois" pelos nomes", mas tenho um enorme gosto em deixar as pessoas a remoerem-se.Não sei como existem pessoas que com a sua maneira de ser e estar na sociedade ainda queriam estar na linha da frente em governar um pais.
Agora de forma mais directa, este movimento que quer ser um partido, o Bloco de Esquerda,mais especificamente o de Coimbra,está cheio de Intelectuais, que so aparecem na altura das eleições.
O futuro vai reduzir o Bloco a uma insignificante expressão a nivel de votos, a unica moda que veio para ficar foi a da mini saia.
Abraço
http://www.100nada.net/analise-politica-100nada-2/2009/02/01/
Obrigado ao anónimo pela informação,este blog não conhecia.Também concordo com este do 100nada.net
Marco
De vez de fazerem algo de util pela Baixa,andam para aqui a ver se são plagios ou textos adaptados.
Amigo Marco, o post em causa foi uma adaptação que fiz de alguém que também acreditou em “modas”, sei que é um pouco enigmático quanto ao seu destinatário, como disse um camarada meu, que também não deixou de subscrever a crítica à “esquerda coitadista” Afirmando mesmo, e concordo na totalidade, que não serão com certeza “coitadistas” que farão um novo Abril, esses estão mais preocupados com o seu umbigo, no “controleirismo” e com o seu intelecto, que pensam que é superior aos outros.
Quando escrevo e o que escrevo, quase sempre tem destinatário ou destinatários, gostem ou não gostem. Também sei, que existe quem leia e comente o que escrevo, quem ignore e quem fique remoído mas não se manifeste. Temos pena, a critica construtiva e fundamentada é sempre bem-vinda.
A liberdade de pensamento, o saber seguir e construir o nosso próprio caminho, só demonstra a nossa independência como ser humano.
Quem critica por criticar, quem segue um caminho, simplesmente porque os outros o seguem ou seguiram, ou pior, os mandam seguir, pouco ou nada estão a contribuir para a democracia.
Não queria usar o termo “controleiros”. Mas não encontrei nenhum sinónimo, aliás a palavra nem existe, ou existe? Existe mas só no Mundo da política, em alguns partidos ou movimentos políticos.
Eles controlam, controlam, ou pensam que controlam, utilizam as mais variadas formas, só que não têm muita sorte, pelo menos no meu caso, que fui dirigente de um partido, que é acusado pelos outros partidos de ser um partido “controleiro” e de não dar liberdade de expressão e voto aos seus dirigentes e militantes, mas nunca o senti de forma acentuada. Optei por ser independente na política, mas independente por não ser militante, por querer ser independente na minha maneira de ser, estar e pensar. Continuarei a minha cruzada pela Freguesia e para a Freguesia, defendendo os valores sociais e democratas.
Os meus tempos de Bloco, já foram, unicamente me revejo no José Manuel Pureza, esse sim, é puro, simples, sabe falar para o povo e estar com o povo.
Até o limite tem limites!
Um independente pela Freguesia
Luís:
Linda história, como sempre!!!
É sempre bom ver as suas vivências romantizadas (ou não...), porque, por serem tão ricas, enchem o olho de qualquer um e a Fábrica d'estilo!!!
Viva a Revolução!!!
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