E lá passou mais um dia comemorativo da Revolução dos Cravos. Mais um domingo normal para mim. Se fosse à semana seria também um normal feriado. Desengane-se quem pensar que vai ler umas linhas dum saudosista salazarista, um reaccionário ou outros adjectivos que me habituei a ouvir ao longo dos anos. Até nomes à minha mãe chamaram quando me recusei há cerca de 20 anos atrás a colocar um cravo no peito. Sou um democrata pluralista, gosto da liberdade adquirida nesse dia 25 de Abril de 1974.
Antes de dizer as razões «porque nunca gostei do 25 de Abril»,devo fazer uma pequena introdução: tenho quase 40 anos, ou seja, nasci no Estado Novo mas cresci em democracia. A minha família é constituída por pessoas de trabalho. Não sou descendente de burgueses ou capitalistas. Basta referir que o meu pai andou descalço até aos 13 anos e só usava o calçado quando era estritamente necessário. Ia descalço trabalhar e assim regressava, para poupar os sapatos e fazer durar. Referi estes aspectos para perceberem porque me irritava certas expressões usadas quando se dirigiam ao meu pai ou a mim.
Então porque nunca gostei do 25 de Abril? Pela simples razão de, desde miúdo, sempre pensar que esta data era o dia dos comunistas. Só via foices e martelos por todo lado. Actualmente sei que eles aproveitavam esta comemoração para tentar demonstrar que foram os obreiros da Revolução: os únicos que lutaram pela democracia (não era bem esta que eles queriam). Nos primeiros anos, logo a seguir a 1974, quem não punha um cravo ou não ia para a rua comemorar era logo apelidado de fascista –como foi o meu pai-, por vizinhos e colegas de trabalho. Quem tivesse um pequeno comércio, um carro e 4 inquilinos em 1974, como o meu avô, era um indivíduo perigoso, um potencial reaccionário. Era normal aparecer pintados os muros da casa com frases insultuosas. Provavelmente não seriam os inquilinos, eram, quase de certeza, os vizinhos membros de comissões, do PCP, MDP/CDE, etc. Durante o PREC, Processo Revolucionário em Curso, várias vezes, vi o meu pai de balde de cal e trincha na mão a apagar os insultos gratuitos de indivíduos que se refugiavam no anonimato.
Outra recordação que lembro era a de um vizinho que sempre que eu passava mais o meu irmão, isto durante toda a minha infância, continuamente, me apelidava: «ó capitalista!». Atentemos no facto de que eu teria 6, 7, 8 anos e o meu irmão 4, 5, 6 anos. Eu ia a chorar contar à minha mãe: «o senhor Sílvio chamou-nos capitalistas». Poderia eu lá saber o que queria dizer o vocativo? O que entendia era que se tratava de algo insultuoso. Isso dava para eu perceber. O meu pai soube e foi ter com o indivíduo. Na sua presença ele negou, mas sempre que passávamos sozinhos continuou a fazer o mesmo. Claro que ainda hoje quando o vejo tenho vontade de lhe dizer algumas coisas, até pelo facto de o ter ouvido recentemente no autocarro a afirmar que tem saudades do PREC, e a afirmar que “Vasco Gonçalves foi o melhor primeiro-ministro de sempre em Portugal!” -bem, quanto a mim, pela displicência, esta frase deveria dar multa, e bem pesada.
Havia outro, o «Antonio do talho» -já falecido-, tinha um talho na Rua dos Esteireiros, apertava-me as bochechas, magoava-me realmente, e chamava-me «fascista». O meu irmão sempre foi mais rebelde que eu e um belo dia quando o António lhe apertou a bochecha até a face ficar rosada (se ele soubesse o que nos aleijava!), espetou-lhe uma canelada. Foi ter com o meu pai e contou-lhe. Estava eu cheio de medo da reacção do meu pai mas quando soube que nos chamava de “fascistas”, disse para tornar a fazer o mesmo. Não admitia o termo utilizado, pois sabia que ao chamar aos filhos, por arrastamento enquanto pai, estava a chamá-lo a ele também.
Outra recordação, e esta para mim é a mais desagradável, pelo medo e terror que me causou. Chorei e não dormi durante dias. Vínhamos para casa, os meus pais, eu e o meu irmão, de carro a passar a ponte de Santa Clara. Então uns senhores que durante o PREC se julgavam os donos deste país, estavam a efectuar uma operação stop e revistas aos carros. Como se fossem agentes da autoridade, ao género do COPCOM, (outra aberração da época). De realçar que estavam armados. Agora imaginem como uma criança de 5 anos vê a situação, a imagem com que fica ao ver o carro do pai a ser revistado, o terror e medo que vai na sua cabeça. As caras e as bandeiras que estavam nesta situação eram as mesmas que eu via depois, nos anos seguintes, a comemorar o 25 de Abril. Então, para mim, ficou gravado na minha mente que esta data era o dia de festa destes indivíduos maus, que mexeram no carro do meu pai e que pintavam os muros da casa do meu avô.
Em conclusão, esta celebração é importante mas se me permitem a analogia, não é por ir á igreja e à missa todos os domingos que uma pessoa é melhor e mais cristã que outra. Portanto, deixem-me comemorar como quero, sem cravos e sem ir a festividades. Sinto-me muito bem em casa a ver televisão ou a surfar na Internet, a ver o Questões Nacionais.
Abraço.
3 comentários:
Não vou comentar as memórias do Marco. As suas memórias são isso mesmo: primeiro são suas e depois são, como qualquer memória, o que fica no consciente depois de um processo complexo de filtragens. As minhas memórias do 25 de Abril e dos meus 19 anos são muito diferentes das suas (os meus filtros são outros) e não vou perder nem o seu tempo, nem o meu a tentar provar-lhe que as minhas memórias são melhores ou mais genuínas. O que me leva a escrever-lhe é, por um lado solidarizar-me consigo enquanto 'vítima' das apertadelas de bochecha do sr António do talho, por outro fazer um pequeno, mas justo esclarecimento. Como vizinha da frente do sr António lembro-me de, sempre que saía para a escola, abrir muito devagarinho a porta para ver se conseguia escapulir-me sem ter as bochechas atormentadas. Quando julgava que me ía safar, lá aparecia o sr António (aposto que ele se escondia...) de dentadura postiça na ponta da língua e a chamar có có, có có. Um desatino...
O sr António adorava animais: era inclusivamente membro da sociedade protectora dos animais, decisão de uma ironia profunda tendo em conta a sua profissão de talhante e esse amor levava-o a olhar pela gataria das redondezas, tendo um dia salvo uma gata de lá de casa que se tinha armado em equilibrista e caído do telhado.
Um dia assisti a uma cena que costumo contar quando falo do 25 de Abril: ía o sr António a sair do talho e é quase passado a ferro por um automobilista descuidado que acelarava R. dos Esteireiros abaixo. Mal refeito do susto dispara o sr António "Vê lá se vais mais devagar oh meu grandesíssimo, meu grandessíssimo...fascista!"
Nem mais. O sr António já percebera que este novo vocábulo que entrara tão recentemente no léxico do cidadão e da cidadã comuns tinha a ver com alguém que não era boa rez, não tinha respeito pelos outros, não se importava com o mal que causasse aos outros e, perante uma situação real, ali à sua porta, usou-o. E muito bem!
Mª Helena Dias Loureiro
como é evidente o homem 'acelerava' e não 'acelarava'...
Mª Helena Dias Loureiro
Eu comemorei à minha maneira, não com um cravo mas com uma papoila vermelha.
Os tempos mudam,temos de saber acompanhar a mudança.
Bom texto Marco
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