quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

O ÚLTIMO PREGOEIRO DA SORTE

(O CAUTELEIRO CARLOS GOMES NUNES)

  Poderemos dizer que a alma das cidades, o seu animus, o espírito que, para além de as tornar diferentes entre si, as mantém vivas no dia-a-dia de quem a habita e “consome”, e sobretudo na memória dos que partem, reside nos seus vários diversificados patrimónios locais. É o arquitectónico –no caso de Coimbra, as românicas Igrejas de Santa Cruz e Sé Velha, entre outros, por exemplo-, é o património natural –a Lapa dos Esteios, a Mata Nacional do Choupal-, o património industrial –que deveria manter em actividade uma pequena fábrica com máquinas da revolução industrial, uma tipografia, com as suas máquinas de impressão em offset-, o património artístico –por exemplo, tentar preservar uma das poucas fábricas de olaria que restam neste ramo tão identificativo da cidade-, o património comercial – que deveria preservar os velhos cafés de tertúlia, as suas tascas típicas e castiças; pelo menos uma mercearia antiga; uma loja de ferragens; uma loja de tecidos a metro, a meu ver mantendo todas estas casas em funcionamento. Estou convencido que, se houvesse interesse por parte da autarquia seria possível, através de incentivos fiscais, mantê-las em actividade, pelo menos uma de cada ramo.
Para além destes patrimónios materiais existem outros que vão desaparecendo sem que ninguém se importe. Refiro-me a pessoas. Podemos chamar-lhes património pessoal das cidades. Lembro, por exemplo, o vendedor de "banha da cobra", que ainda nos anos de 1980 haviam vários a trabalhar na Praça do Comércio. Relembremos por momentos o som da flauta do amolador de tesouras. Quem não se lembra, até há uma dezena de anos da vendedeira de camarão “da costa”, com a sua canastra, que, vindo da Figueira da Foz, vendia aqui nas ruas estreitas? Seria difícil às autarquias reconstituir este património pessoal? Penso que não, desde que houvesse vontade. Através dos vários grupos de teatro era perfeitamente possível teatralizar muitas destas profissões desaparecidas.
E lembrei-me de escrever sobre os vários patrimónios citadinos, enquanto enriquecimento da vida pública, porque hoje encontrei, penso que talvez, o último e único vendedor de lotarias, vulgarmente conhecido como cauteleiro. Ainda há poucos anos eram vários vendedores. Os seus pregões bem ritmados ecoavam pela cidade: “quem quer a taluda?! É a sorte grande! Anda amanhã à roda! É a última, é a última! Quem quer ser milionário?!”
Encontrei à hora do almoço o Carlos Gomes Nunes a sair da Casa da Sorte, onde, momentos antes, se fora abastecer. É um simpático homem que, como caminheiro de São Tiago, percorre a Baixa a tentar vender a sorte a quem acreditar nela. O Carlos não é pregoeiro no sentido lato, porque, provavelmente em criança, devido a uma doença do foro neurológico –poderia ter sido a poliomielite- arrasta o corpo e a voz, quase se tornando difícil entendê-lo. Mas, quando falamos com ele, é curioso, tem um ar de felicidade que transparece, como se bem lá do fundo da sua alma viesse um sorriso encantador de criança.
Se a maioria de nós, mesmo em grande esforço, de vez em quando lhe comprasse uma cautela, o Carlos continuaria a enriquecer as ruas da nossa cidade. Estas pessoas “típicas” desaparecem devido ao nosso autismo e desinteresse em ajudar. Não tenham dúvidas, todos temos responsabilidade no desaparecimento de todos os patrimónios colectivos que enunciei.
É através da nossa intervenção cívica –nem que seja pela presença- que poderemos evitar o genocídio cultural que atravessa a nossa sociedade hodierna.
Uma coisa todos poderemos contar, se não nos envolvermos activamente na defesa do que é nosso por direito, ninguém espere que o poder político o faça. Este poder político, tendo uma responsabilidade acrescida na “felicidade interna bruta”, parece, contrariamente ao seu objecto social, ser o nosso maior inimigo. Parece que, ao querer retirar-nos estes pequenos nadas, tornando-nos insensíveis, provocando a angústia e a infelicidade, pode assim reinar mais à vontade. Estranha forma de gerir a “res pública”, não acha?

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