Para quem não souber, Anildo Monteiro é um sem-abrigo, de ascendência cabo-verdiana e naturalizado português, que tem vagueado pela Baixa até agora e desde há cerca de dois anos. Desde essa altura que este sujeito manifesta uma notória disfunção psico-social.
Durante muito tempo pernoitou num compartimento junto à taberna “O Buraquinho”, na Travessa da Rua Velha. Como fazia as suas necessidades fisiológicas, quer dentro do compartimento, quer fora e junto ao estabelecimento de comidas, o dono da tasca tratou de se desembaraçar dele. Saliente-se, curiosamente, que quem lhe viria a resolver o problema seria outro frequentador destas ruas estreitas e que também sofre de anomalia psíquica.
Até Maio deste ano, muitas vezes me cruzei com ele, na maioria à tardinha, ia ele em direcção ao Largo do Poço com dois garrafões plásticos recolher água insalubre. Quando passava por mim, era matemático na acção repetida: “que horas são? Amanhã é terça… não é? Dá-me uma moeda? Precisava de comer uma sandes!”
Tomei para mim como certo que este indivíduo era igual a tantos outros que circulavam pelo Centro Histórico. Ou seja, com as mesmas patologias associadas: alcoolismo, inadaptação às regras sociais e alguma demência em consequência da falta de cuidados de saúde. Até que em Maio, último, dei de caras com ele a dormir no meio do lixo, num prédio decrépito no Largo da Maracha. O cheiro exalado do seu corpo era nauseabundo. Foi aí que “acordei” para o drama deste homem. Ao mesmo tempo, comecei a conversar com ele e, na minha qualidade de cidadão com alguma experiência de vida, verifiquei que este homem estava muito mais incapacitado psiquicamente do que parecia. O seu discurso era repetitivo, “que horas são? ...Que horas são? ...Amanhã é terça… não é?!”, e tinha uma conversa muito curta e redundante, sempre em torno de uma moeda e os locais onde ia pedir. Se tentasse ir mais longe ele era curto nas respostas, mudava facilmente de tema, e novamente interrogava: “amanhã é terça, não é? ...Que horas são? ...Que horas são? …Amanhã é terça… não é?”
Escrevi um texto em 25 de Junho e enviei para Segurança Social, para a Câmara Municipal de Coimbra e aguardei. Desta última, em 30 de Junho, recebi uma comunicação em que me era dito que “mereceu a nossa melhor atenção e informamos que a mesma foi encaminhada para análise para a Divisão de Acção Social e Família”. Fiquei mais descansado e a pensar que rapidamente este problema se resolveria. Entretanto fui escrevendo mais textos, fotos, e enviava para a autarquia. Em Julho escrevi também uma crónica no Diário de Coimbra. E o tempo foi passando, escrevendo mais, e vendo que ninguém fazia nada. Algumas vezes apanhei o Anildo a comer directamente de um contentor de detritos e próximo da Loja do Cidadão.
Como já tinham passado 4 meses e tudo continuava igual. Em 23 de Setembro, fui ao Ministério Público tentar fazer uma participação. Esta entidade jurídica de defesa do Estado, na pessoa da funcionária e da procuradora não aceitaram a minha comunicação. A primeira, a funcionária, foi taxativa, dizendo que não aceitava a participação porque o Anildo já tinha processo e em Maio, com um mandado de um juiz e visando o internamento compulsivo, acompanhado de dois polícias, tinha ido ao hospital, sendo consultado por dois psiquiatras e um deles, que assinou o relatório, “diagnosticara que o Monteiro estava pleno das suas faculdades mentais, com perfeito raciocínio lógico e detentor da sua vontade, fala fluentemente e, na consulta, até brincou com a situação”.
Neste relatório foi escrito pelo médico-psiquiatra que “estamos perante um costume social associado à vontade do próprio”.
A segunda pessoa com quem falei foi a procuradora do Ministério Público que, apesar da minha argumentação em torno da necessidade de uma segunda avaliação mental, mostrando-me o processo, se limitou a constatar a sua impossibilidade de fazer mais alguma coisa pelo Anildo. À minha pergunta se comer do lixo é um costume social, a procuradora engelhou o nariz.
Como me indignou toda esta impotência, tentando através da denúncia pública, escrevi para as televisões e pedi ajuda a quase todos os jornais nacionais e um de Cabo Verde, este na tentativa de encontrar familiares. Apenas recebi uma resposta do Jornal Liberal de Cabo Verde, que no dia 26 de Setembro fez uma reportagem sobre o Anildo Monteiro. Para além disso, escrevi para o presidente da Câmara Municipal de São Vicente –de onde o Anildo é natural- e para um vereador. Enviei também um e-mail ao Presidente da República de Cabo Verde e outro para a Embaixada de Cabo Verde, em Lisboa. De nenhuma destas entidades recebi uma única resposta.
Perante este pingue-pongue, no dia 10 de Outubro contactei alguns comerciantes e outros amigos mais sensíveis para estas questões humanitárias para, juntos, irmos ao executivo municipal pedir ajuda para este caso dramático de um homem, aparentemente senil, que todos-os-dias morria um pouco nas ruas da cidade. Se dos amigos mais sensíveis nem um apareceu na edilidade coimbrã, já por parte dos comerciantes responderam à chamada uma vintena.
Perante o executivo municipal, dando eu voz à vontade dos presentes, pedimos ajuda para um caso que, na omissão, a nosso ver, extrapolava qualquer caso semelhante. Não só na parte humana como também na parte estética, uma vez que o Anildo tresandava a pútrido e defecava onde calhava.
Para responder às questões colocadas, para além dos membros do executivo, estiveram presentes o director da Divisão de Acção Social e Família, da Câmara Municipal, e uma técnica da Associação Integrar. Pelo primeiro foi dito ter conhecimento do caso e que, nas semanas subsequentes chamaria a si este drama e me contactaria. Pela especialista em serviço social foi dito conhecer todo o processo e que o Anildo estava notoriamente afectado psiquicamente. Foi dito também por esta técnica que na semana seguinte eu seria contactado para fazer um abaixo-assinado junto dos comerciantes e também para os acompanhar à noite, onde levariam um psiquiatra para tentar uma nova avaliação com o objectivo do internamento compulsivo.
O tempo foi passando. No passado dia 8, deste mês, e quase um mês depois, recebi uma comunicação telefónica desta técnica da Integrar, para me dizer que “era para o informar que, não sei se sabe, mas o Anildo, nos últimos dias, anda muito mais limpo”. Tratei de lhe lembrar que estava em falta comigo, no compromisso que assumiu na Câmara Municipal.
Hoje, dia 17 de Novembro, isto é, passados 6 meses, fiquei a saber, através de um simples comentário no blogue, e que me reportava para a página da Integrar no Facebook, que escrevia o seguinte:
“Finalmente conseguimos! O nosso utente foi internado no CHPC! Portanto estamos esclarecidos quanto a este assunto”. Isto quer dizer que com os esforços que por vezes roubaram também tempo a outras situações, a Equipe de Rua da Associação Integrar conseguiu resolver o problema do Sr. Anildo, mas foi a Equipe de Rua da Associação Integrar, não foi a CMC, não foi mais ninguém... foram as jovens da equipe de Rua que o conseguiram...”
E PARA A DIVISÃO DA ACÇÃO SOCIAL E FAMÍLIA NÃO VAI NADA?
Ora tomando em conta este tipo de comunicação, dá para especular que a Divisão de Acção Social e Família, da Câmara Municipal de Coimbra, não risca nada no panorama social da cidade.
É evidente que aos comerciantes deveria ter sido feita uma comunicação oficial, primeiro pela autarquia e, depois, eventualmente, pela Integrar.
Tomando atenção ao comentário, ao pugnar pelo seu inteiro protagonismo, e assinado com iniciais, dá para ver que é alguém que pertence a esta associação. Na parte que me toca e também pelos comerciantes, temos a certeza de que a Integrar pode ficar com a bandeira, o pau e os louros. Para nós, comerciantes, o que nos interessa é a resolução do problema. Ficamos muito contentes que, finalmente, o Anildo Monteiro esteja a ser tratado como pessoa.
No entanto, aguardando um final feliz para o Monteiro, não podemos deixar de lamentar toda a tramitação necessária, de "Seca para Meca", que foi preciso passar para internar compulsivamente este meu amigo. Alguma coisa não está bem na Lei de Saúde Mental. Como quem não sente não é filho de boa gente, lamentamos também a subalternização da Câmara Municipal ao longo deste processo e, mais particularmente, neste final. Enfim! A cada um sua responsabilidade.
4 comentários:
Li isto hoje página da Integrar no Facebook : “Finalmente conseguimos! O nosso utente foi internado no CHPC! Portanto estamos esclarecidos quanto a este assunto”. Isto quer dizer que com os esforços que por vezes roubaram também tempo a outras situações, a Equipe de Rua da Associação Integrar conseguiu resolver o problema do Sr. Anildo, mas foi a Equipe de Rua da Associação Integrar, não foi a CMC, não foi mais ninguém... foram as jovens da equipe de Rua que o conseguiram...”
Quero aqui informar que conseguimos todos e não só os jovens da equipa de Rua, consegui eu e o Luís Quintans do blogue Questões Nacionais que de uma forma ou outra nunca deixamos que se omitissem o Anildo, conseguiram os comerciantes da baixa que estiveram presentes na reunião da Câmara Municipal de Coimbra, conseguiu o Dr. João Gaspar do Departamento de Acão Social e Família da CMC e finalmente a equipa de rua da Integrar.
Um pouco de reconhecimento e humildade não fica nada mal!
finalmente este Sr vai ser tratado como um ser humano. Pagamos tantos impostos, não deveria haver nem um sem abrigo nas ruas, a nossa segurança social deveria ser muito mais humana e eficiente. Estou feliz por o sr Anildo já não andar a morrer aos poucos nas ruas.
Bem haja
Obrigada, Celta, pelo comentário. Como diz, ainda bem que finalmente levaram o Anildo para tratamento.
Abraço.
Grata pelo seu cuidado e impressionada com mais este relato que nos faz de um caso como tantos outros que infelizmente se verificam. Fico, no entanto, satisfeita com o trabalho dos diversos intervenientes que tornaram possível a devida intervenção junto do Sr. Anildo. Que este possa ser mais um caso de sucesso. Mais uma vez os meu parabéns pelo seu cuidado, pela sua preocupação, pelo ser humano que é.
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