Há dois anos escrevi um texto sobre o bom trabalho que presta junto ao Estádio Universitário e chamei-lhe o “Guardião da Margem Esquerda". Escrevo sobre José António Ferreira da Costa e sobre o “serviço público” que este homem, de 53 anos, arrumador de automóveis naquele local há precisamente 30, presta a quem ali quer e precisa de estacionar.
Estou à vontade para descrever o seu “trabalho” diário, porque arrumo lá a minha viatura. Mal um carro se aproxima, o José, lá ao fundo, esbraceja e assinala para ser seguido. E num canto, bem distante, lá está um lugar à nossa espera e que, fugindo à nossa observação, não teríamos dado por ele. Enquanto percorremos o espaço de terra-batida damos conta do alinhamento perfeito de todos os automóveis. Estacionamos e somos recebidos por um “bom dia. Como está?”. No meu caso, porque o conheço bem, retribuo da mesma forma o cumprimento e interrogo: “você, “Zé”, como é que está?”. E o “Zé” António, quase de certeza que me irá responder: “vou mal. Estou aqui com uma dor do lado esquerdo que nem posso. Não sei se é do tempo. Sei lá!”. É também possível contar-me um pouco dos seus problemas. Os seus amores que acabam em desamores. Enquanto o escuto, reflicto no quanto somos todos tão parecidos. Nunca o vi pedir dinheiro a ninguém. Eu dou uma moeda, outros dão, mas sempre, sempre, pela nossa vontade. Isto é, o reconhecimento de que este homem está a prestar um bom "serviço público", embora não declarado legalmente.
Hoje, de manhã, estava muito triste. Notei-lhe no semblante sorumbático.
-Então, “Zé”, não me diga que sofre outra vez de mal de amor? Não me diga que foi outra vez levado no “conto do vigário” pela tal fulana? –atiro-lhe em jeito de provocação.
-Não, não é isso. Antes fosse. Isto é mais grave, responde-me com rosto carregado.
-Então? Conte lá, homem, tudo se há-de resolver –atiro para o animar.
-Foi a Polícia Municipal… esteve aí a notificar-me para eu pagar uma multa por estar aqui a trabalhar.
-Mas você não tem licença para estar aqui a mandar estacionar? Interrogo.
-Não, não tenho. Nem ninguém tem –e aponta para mais dois colegas que fazem o mesmo ao lado dele.
Estou aqui há três décadas. Até há muitos anos atrás tinha um cartão passado pela PSP. Depois deixaram de o emitir e disseram que era com a Câmara Municipal.
Em 19 de Agosto de 2004 meti um requerimento a solicitar a licença de arrumador –e mostra-me o requerimento.
Em 10 de Agosto de 2007 recebi a resposta da autarquia: “(…) o projecto de decisão desta Câmara Municipal encaminha-se no sentido do indeferimento da pretensão, uma vez que (…) o espaço pretendido pertence à Universidade, pelo que é de indeferir o licenciamento da Actividade de Arrumador de Automóveis.”
Retira uns papéis do bolso. É uma notificação do Departamento Jurídico e Contencioso. É um processo de contra-ordenação.
Mandado de Notificação Nº 115/2011
I-DOS AUTOS DE NOTÍCIA
“Fica V. Exª notificado, na qualidade de arguido, do teor da decisão proferida de folhas 12 a16, e relativa ao processo ordenacional em epígrafe identificado, cuja cópia se anexa.
(…) na ausência de impugnação Judicial, a coima aplicada no valor de 60 euros e respectivas custas (52,50 euros) deverão ser pagas no prazo de 30 dias úteis a contar da recepção da presente notificação(…).
Teor do auto
Compulsados os autos, verifica-se que em 17/11/2010, foi elaborado Auto de Notícia, contra José António Ferreira da Costa (…) por no dia mencionado, na Praça das Cortes, Freguesia de Santa Clara, deste município, “se encontrar a arrumar automóveis recebendo dinheiro dos condutores, sem que para o efeito fosse detentor de licença de arrumador de automóveis, emitido por esta edilidade.”
II- DA INSTRUÇÃO
- Em consequência dos factos descritos (…)
- O arguido não veio a intervir no processo
IV-DO DIREITO
(…) Estabelece o artigo 26º do Regulamento de Arrumador de Automóveis, em vigor neste Município (Edital nº 146/2003):
“O exercício da actividade de arrumador de automóveis carece de licenciamento municipal.”
Dispõe a al. f) do nº1 do Decreto-Lei nº 310/2002, de 18 de Dezembro:
“Constituem contra-ordenações (…) o exercício da actividade de arrumador de automóveis sem licença ou fora do local nela indicado, bem como a falta de cumprimento das regras da actividade, punidos com uma coima de 60 a 300 euros.”
QUESTÕES QUE FICAM NO AR
1 –Como pode alguém estar a cometer ilicitude se lhe é barrada a possibilidade de desenvolver uma actividade lícita e não lhe é permitido o aperfeiçoamento da vontade e apenas com base no argumento de que o terreno é particular?
2 –Sendo o terreno pertença da Universidade, portanto particular, como pode intervir livremente a Polícia Municipal?
3 –Onde está a fundamentação de “se encontrar a arrumar automóveis recebendo dinheiro dos condutores”? Quem pagou? Quem se queixou? Onde está a identidade do queixoso? A acusação é genérica e com base em pressupostos?
4 –Houve danos em automóveis que obrigassem a intervenção da Polícia Municipal? Há queixas de danos?
5 –Um mendigo está na rua a pedir, é-lhe levantado um auto contra-ordenacional com base no “receber dinheiro dos transeuntes?”
Considerando que a lei é tendencialmente injusta e a justiça, como sentimento de paz colectiva, tem por obrigação ser a virtude das virtudes da equidade, neste caso, estamos perante o quê? Um absurdo? Uma arbitrariedade?
Este homem, que não se embriaga, que não se droga, não provoca danos no meio ambiente, pelo contrário, gratuitamente, contribui para uma ordenação sem que o proprietário particular ou o gestor da coisa pública pague qualquer subvenção pelo seu alegado serviço em prol da comunidade, este arrumador deve ser empurrado para a delinquência, para a criminalidade, porque o sistema que nos rege sofre de estigmatismo e falta-lhe o necessário bom senso?
(TEXTO ENVIADO PARA CONHECIMENTO DA CÂMARA MUNICIPAL)
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1 comentário:
Se fosse toxicodependente, sem-abrido ou de etnia cigana tambem lhe levantavam um auto? Claro que não.
Triste Coimbra!
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