São 21h30 de um qualquer dia da semana. Apesar de se visionar e sentir a primavera nas flores, faz algum frio e uma brisa suave teima em abanar os ramos das acácias floridas. Do Edifício Azul, do Largo das Olarias, em frente à Loja do Cidadão, em passo marcado e decidido, saem duas mulheres e um homem. É a Maria Martinha, a Mónica e o Ricardo. A comandar o pequeno pelotão, a Martinha vai à frente e segue em direcção a uma "unidade móvel" -carrinha com vários lugares e um espaço para atendimento personalizado- estacionada ali ao lado. No largo, espalhados com ar ansioso, cerca de uma vintena de sem-abrigo esperam, certamente, uma refeição trazida por uma qualquer instituição de apoio aos “descamisados” da sorte. Nenhum dos elementos deste trio proferiu uma palavra, mas pelo ligeiro enrugar das frontes deu para perceber que todos foram tocados pela pobreza emergente daquela pobre gente.
Entraram todos no ligeiro e seguiram em direcção à Avenida Fernão de Magalhães. Pararam em frente às Finanças, quando avistaram duas mulheres, uma já malhada e martelada pelo tempo e outra com cara de adolescente, ambas de saia curta e um generoso decote de fazer ressuscitar um morto. A primeira a ser abordada foi a mais velha. Tal como a outra, de ombros à vela e seios um pouco flácidos em promessa de olhar o chão. Quando esta avistou o grupo, de braços abertos como o Cristo-Rei, efusivamente exclamou: “olha a minha “irmã”! E correu a dar um beijo na face de Martinha, seguindo-se os outros rostos acompanhantes. Rapidamente, Mónica, por já conhecer bem os hábitos desta mulher, puxou de um termo e despejou um café a fumegar num copo plástico. Enquanto a visitada ia sorvendo o líquido escuro em goles, Martinha, puxando do seu casaco de abrigo e colocando-o sobre os ombros desnudos da mulher de vida difícil que “tirititava”, interrogou: “então Adelaide, como é que estás hoje? Já te passou a dor de estômago?”. Perante o aceno de cabeça, insiste a Mónica: “não te esqueças que, se precisares, marcamos-te a consulta no posto de saúde. Se tiveres necessidade, não hesites em contactar-nos no gabinete do Edifício Azul. Um carro pára com um homem já de alguma idade dentro. Adelaide, mesmo com o copo meio de café colocou-o com meiguice na mão de Martinha e dirigiu-lhe um olhar ternurento de despedida, talvez a agradecer o agasalho oferecido, ou a querer pedir desculpa pelo abandono da conversação. Mónica, em desespero de causa, levantando um pouco a voz, ainda interrogou: “precisas de preservativos?”. Mas a mulher, engolida pelo Mercedes, e já com este em andamento, abanou a cabeça negativamente e perdeu-se na noite escura.
Para nenhum dos voluntários do projecto “ERGUE-TE”, das Irmãs Adoradoras, este comportamento é estranho. Todos eles sabem que a sua missão de humanidade, como míssil de precisão, terá de ser rápida e eficaz na acção. A “mulher de rua” não pode perder tempo. Aquelas duas horas que as separam da meia-noite são a esperança que vai alimentar um filho, dois filhos, outras vezes o proxeneta. Não vale a pena vir com lições de moral, esta é a realidade nua e crua que nos cerca. “Vida dura, que perdura, para quem não tem outra saída”, pensa Martinha com seus botões, apesar de nada disto ser novidade para nenhum deles.
Maria Martinha, mulher esbelta em corpo franzino, olhar brilhante de inteligência, que há muito aprendeu a olhar para a existência como uma extensão de nós, é freira. Não fosse uma pequena medalha de Cristo Crucificado, pendurada ao pescoço em fio de prata, e ninguém diria que esta locomotiva de vontade se dividia entre o amor a Deus e os humanos.
O projecto “ERGUE-TE” é um programa humanitário em missão de ajuda às mulheres que se prostituem e aos seus agregados familiares no distrito de Coimbra.
No ano passado, de 2010, atenderam e prestaram ajuda a mais de quatro centenas de mulheres em risco social nas ruas da cidade, nas estradas, nos bares de alterne, nas pensões e em apartamentos.
Este meritório serviço de integração social e de prevenção de saúde pública foi, até agora, patrocinado pela Segurança Social, através do agora extinto Ministério do Trabalho. Escusado será dizer que as verbas consignadas mal dão para remunerar os três técnicos, uma assistente social, um educador social e uma psicóloga. Para acudir a tantas bocas em sofrimento só é possível graças à ajuda desinteressada de voluntários e outros que, com altruísmo, ajudam a manter a chama da solidariedade viva em exemplo para todos os cidadãos.
Foi com surpresa que, na semana passada, mais exactamente, no dia 14, lemos no Diário de Coimbra (DC), em título, “Apoio da Saúde em Português chega às prostitutas de rua”. Segundo o DC, trata-se do “Projecto “Saúde na esquina” (que) prevê acompanhar 150 mulheres durante um ano, a quem será dado apoio médico gratuito”.
Continuando a citar o jornal, “Uma equipa composta por 10 elementos, entre os quais três médicos, um enfermeiro, um psicólogo, um técnico social, um sociólogo, entre outros, encarrega-se das visitas aos locais. As parcerias foram encontradas na Administração Regional de Saúde do Centro, Associação Existências e Centro de Aconselhamento e Diagnóstico Precoce do VIH de Coimbra. O financiamento, conseguido em 80%, surge da Direcção-geral de Saúde”.
Será que lemos bem? Então foi criado um projecto igual, ou parecido, pelo menos nos mesmos moldes, ao desenvolvido pelo “ERGUE-TE”? Quer dizer, há uma diferença: um é apoiado pela Segurança Social e outro pelo Ministério da Saúde. Fará sentido? Não estaremos perante uma duplicidade do mesmo âmbito territorial e social? Quem gere a saúde pública em Portugal conhecerá o projecto “ERGUE-TE”?
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