(FOTO DO CM)
Conta aqui o Correio da Manhã que “um casal de sem-abrigo estava a praticar sexo à luz do dia, em plena rua pedonal de Santa Catarina, uma das mais movimentadas da cidade do Porto, e acabou espancado por um grupo de pessoas que ficou indignado com aquele comportamento”.
Se à primeira vista esta notícia choca, numa segunda, pela intervenção dos transeuntes, ainda que possa ser desmesurada, dá para ficarmos mais tranquilos, afinal, perante a pouca vergonha, o povo ainda reage com indignação. É que, aparentemente, pelo que vemos diariamente, até parece que o sentimento de repulsa desapareceu das pessoas que nos rodeiam. É como se a rua estivesse entregue a si mesma. Reinará nela quem tiver a maior força para se impor sem grande dificuldade.
Nalgum egoísmo associado, cada um trata da sua vidinha sem querer saber do que se passa ao lado. Também é verdade que o sistema prega aos sete ventos que todos devemos participar na vida pública, mas depois, quando um cidadão, por exemplo, é testemunha fundamental de um assalto, não assegura a sua defesa e fica por sua conta e risco. E o problema é que não é só na integridade física. Começa por ser chamado uma ou várias vezes à polícia para ser ouvido em fase de inquérito. Depois no julgamento, se preciso for perde-se um dia ou dias se a audiência for repetida. O que aborrece mais é a falta de consideração que os tribunais têm por quem colabora com a justiça. Hoje há forma de contactar uma testemunha a qualquer momento. Ora, não há razão nenhuma que justifique manter uma testemunha um dia inteiro no tribunal e, muitas vezes, para ser ouvido apenas no dia seguinte. Estamos perante uma falta de respeito pelo cidadão. Outras vezes, sem cuidado no trato, magistrados e advogados tratam mal as testemunhas. Chegam a insultá-las, no pressuposto e convicção de que estarão a mentir. Em resultado final de tudo isto é que a maioria de cidadãos passa ao lado de tudo e foge como diabo da cruz de ser declarante de um qualquer facto. Então a consequência desta não-intervenção, em omissão, é que aquela força abstracta de repreensão colectiva que existia há décadas progressivamente foi desaparecendo. Hoje, perante um qualquer atropelo na via pública, é raro assistirmos à ingerência de um homem de barba rija ou mulher de "pêlo na benta", como antigamente.
Não posso deixar de contar uma pequena história que nunca me esqueci e que, de certo modo, foi fundamental para o meu agir no dia-a-dia. Em meados da década de 1980, vinha do Vale das Flores a conduzir a minha 4L. Quando circulava na Rua Urbano Duarte, de repente, um veículo, vindo de uma transversal com stop, atravessou-se à frente e, inevitavelmente, bati-lhe com grande intensidade na parte lateral da frente. O condutor já de idade e de aspecto simples, saiu do carro e, perante os estragos que eram visíveis nas duas viaturas, mas sobretudo na dele, desatou a chorar como uma criança: “ai senhor, o carro é do meu filho, eu não tenho dinheiro para o arranjar. O que vai ser de mim?”. E as lágrimas caíam-lhe pela cara abaixo. Naturalmente, como é óbvio nesta situação, lá lhe fui dizendo “deixe lá isso. O que interessa é que não nos magoámos. Isso é que importa!”. Perguntei-lhe se não seria melhor chamar a PSP para tomar conta da ocorrência, uma vez que as duas viaturas estavam no meio da via. No meio do rio de lágrimas, o homem respondeu que não senhor, ele assumia a culpa, ele era o culpado porque não tinha respeitado o sinal de stop. Como os dois automóveis ficaram impossibilitados de circular, empurrámo-los para a berma. Neste meio tempo foi-se juntando um magote de gente conhecida do causador do acidente, uma vez que ele moraria ali próximo. Cada um dos seus presumíveis amigos começaram a debitar sentenças, e eu só ouvia “tu não és culpado. Ele é que te bateu!”. Comecei a sentir uns suores frios e a adivinhar o que se iria passar a seguir. E aconteceu. Quando puxei de uma folha branca –nessa altura ainda não eram comuns as “participações amigáveis”- para que ele assumisse a culpa num pequeno texto o homem negou-se terminantemente a assumir. Disse-me mesmo na cara, textualmente, que não assumia. Só quem já passou por um caso destes pode imaginar o que pode acontecer. Passam-nos mil pensamentos pela cabeça. O primeiro será “rebento-te já as trombas, filho da mãe!”. Mas o seguinte já é de ponderação. “Se lhe bater perante tantos amigos saio daqui feito num caco. Por outro lado, chamar a polícia já não vale a pena porque se retiraram os automóveis da posição inicial e será difícil de obter a reconstituição”. Estava eu já a suar a estopinhas quando, em passo acelerado, vejo vir um homem do outro lado da estrada, já idoso mas enérgico, de chapéu na cabeça, com um grande bigode, e com o dedo em riste: “meu amigo, eu vi o acidente. Esse senhor foi o culpado. Atravessou o sinal de stop sem parar. Aponte aí o meu nome!”.
Foi graças ao depoimento deste prestimoso homem desconhecido que a seguradora me pagou o concerto que orçou em cerca de 150 mil escudos, setecentos e cinquenta euros hoje.
Foi ou não foi uma lição? Para mim foi. Nunca mais me esqueci deste episódio marcante do exemplo do homem de chapéu e grande bigode enrolado nas pontas.
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