(IMAGEM DE LEONARDO BRAGA PINHEIRO)
“Entre, entre. Não fique à porta?!”. Entrei para um pequeno corredor repleto de objectos. A porta mal podia fazer a semi-circunferência. Atrás dela uma vitrina cheia de pequenos bonecos pequeninos. A parede à volta, à altura dos olhos, quadros, muitos quadros, uns de paisagens campestres, outros bordados a ponto cruz, outros ainda a ponto de seda de Castelo Branco. Por cima das molduras, ao longo da estreita galeria, vários escaparates com imensas louças da história recente da faiança portuguesa. Vários pratos azul-cobalto de Alcobaça, pintados à mão, num descarado namoro, piscam o olho a outros de Sacavém. Um pouco ao lado mais uma vitrina a crescer para quem passa na estreita passagem faz-me encolher a barriga.
Pela minha experiência de vida, pela psicologia empírica que adquiri ao longo da minha existência, mesmo antes dela falar, sei o que significam estes objectos na sua vida. Antecipadamente consigo adivinhar tudo o que vai dizer. Sei o que quer que eu diga. E solta a alma em viagem temporal, sabendo que, ali, serei o seu espectador e crítico. Sei que devo apenas provocar a memória. Por mais que eu diga, só pouco, muito pouco, será escutado, o que conta ali é a lembrança de uma vida. Fixo o olhar numa foto muito antiga, com um homem fardado de grande bigode enrolado nas pontas.
“Era o meu avozinho. Foi assassinado na passagem da Monarquia para a República. Era um homem de têmpera, contava a minha mãe. Tinha um ar austero, não tinha senhor Luís?
Olhe este quadro, veja a perfeição da igreja no cimo do monte…foi lá que me casei”.
Cada peça decorativa é mostrada em detalhes ínfimos de minúcia. Cada uma é uma linha que conduz a um retalho. Esse retalho é a ponta, de outras pontas, de bocados de vivência que estão marcados a ouro na sua mente. Estes corpos de matéria são a sua história contada em fluxos de luz que só ela vê e sente. É como se cada um tivesse uma legenda e ela, sem grande preocupação em ler porque já sabe de cor e salteado, conta tudo, tudo ao pormenor. De vez em quando, talvez para tomar fôlego, interroga: "gosta, senhor Luís?".
Passamos à sala principal da casa. Os dois armários estão repletos. Por cima, uns almofarizes em bronze fazem parelha com uns tachos de cobre e mais uma panela de ferro, todos alinhados milimetricamente como soldados em formatura, com todo o seu brilho imanente. Dentro do móvel, sem um espacinho vago, muitas porcelanas Vista Alegre parecem querer contar a história da fábrica de Ílhavo desde 1824.
Curva-se mais um pouco, e, abrindo uma gaveta, mostra uma renda de bilros, companheira de muitas outras acavaladas. “Gosta, senhor Luís? Esta renda foi feita pela minha mãezinha por alturas da Segunda Guerra Mundial, numa longa noite de nevão”. Abrindo as duas portas do louceiro, vejo a plêiade de louças antigas que, embora umas em cima das outras, mutuamente fazendo cócegas, se embrulham num respeito de antiguidade. As paredes da pequena sala estão repletas completamente sem se conseguir ver a cor original. Mais uma vitrina está prenha de pequenos apelos de recordação. Não preciso dizer nada. Ela fala por mim: “está a ver ali aquele pequeno anel? Foi o meu pai que o ofereceu à minha mãe quando namoravam, por volta de 1929, aquando da grande depressão”. Num outro canto, uma mesa rectangular tem o tampo repleto completamente. Um candeeiro, com abajur pintado à mão, marca posição como polícia sinaleiro a controlar o trânsito numa praça de uma cidade imaginária e esquecida. “Gosta do candeeiro, senhor Luís? É espectacular, não é? Nunca vi nenhum assim. É um encanto!”. Mais ao lado outra vitrina plena de artigos decorativos. Espreito e vou dizendo, quase em repetição: “que bonito!”.
Curva-se mais um pouco, e, abrindo uma gaveta, mostra uma renda de bilros, companheira de muitas outras acavaladas. “Gosta, senhor Luís? Esta renda foi feita pela minha mãezinha por alturas da Segunda Guerra Mundial, numa longa noite de nevão”. Abrindo as duas portas do louceiro, vejo a plêiade de louças antigas que, embora umas em cima das outras, mutuamente fazendo cócegas, se embrulham num respeito de antiguidade. As paredes da pequena sala estão repletas completamente sem se conseguir ver a cor original. Mais uma vitrina está prenha de pequenos apelos de recordação. Não preciso dizer nada. Ela fala por mim: “está a ver ali aquele pequeno anel? Foi o meu pai que o ofereceu à minha mãe quando namoravam, por volta de 1929, aquando da grande depressão”. Num outro canto, uma mesa rectangular tem o tampo repleto completamente. Um candeeiro, com abajur pintado à mão, marca posição como polícia sinaleiro a controlar o trânsito numa praça de uma cidade imaginária e esquecida. “Gosta do candeeiro, senhor Luís? É espectacular, não é? Nunca vi nenhum assim. É um encanto!”. Mais ao lado outra vitrina plena de artigos decorativos. Espreito e vou dizendo, quase em repetição: “que bonito!”.
Ela, mais uma vez, como se estivesse a tecer um “naperon” mental, vai apanhar a frase e, de alma cheia de contentamento, em pergunta de retórica, vai interrogar: “gosta, senhor Luís?”. Embalada pelo entusiasmo vai puxar a minha atenção para uma pequena mesa de apoio que, de tão coberta por objectos, não dava para apreciar o seu minucioso trabalho de talha. "Já viu esta preciosidade? É um miminho, não é?”
Passamos ao quarto. A mesma coisa. As paredes estão repletas de imagens, algumas sacras. Muitas delas com ornamentos de registos a imitar o antigo. Num canto, várias bonecas e bonecos de papelão prensado, a marcar a história do brinquedo português, no início do século XX. Talvez já habituados à discrição, absortos, parecem alheios ao monólogo e não ligam a quem fala e a quem ouve. Nem sequer um sorriso lhes foi arrancado do rosto imberbe.
Noutro canto, um oratório com um crucifixo ao centro e muitas imagens à volta dão o timbre para um ambiente solene e introspectivo de oração . “aqui é o meu recanto. É aqui que falo com Ele. Quando estou triste venho para aqui. É o meu refúgio. É a minha ilha solitária de partilha. Não estou a maçá-lo, pois não senhor Luís?”.
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