O homem que tenho à minha frente chora desalmadamente. Por entre soluços vai dizendo: “quando passar cá, na Rua dos Sapateiros, vou lembrar-me sempre que andei aqui quase toda a minha vida a trabalhar nesta loja que vou entregar sem nada receber em troca. A única coisa que levo são dívidas, muitas dívidas, mas hei-de conseguir pagar, se Nosso Senhor quiser.”
O homem de 72 anos que assim fala é o Manuel Magalhães. Na terça-feira deparei-me com o seu estabelecimento encerrado, a sapataria Reis, na antiga Rua dos Sapateiros e agora Eduardo Coelho, e ele, na companhia de dois amigos, a desmontar a loja. Naquele dia vi que aqueles gestos, quase mecânicos, eram como se estivessem a desmanchar a sua própria alma em bocados. A cada prateleira posta ao chão era um laivo lancinante perpetrada por uma espada invisível no seu ânimo e no seu coração. Olhar aqueles olhos alagados em lágrimas não era fácil nem para o mais insensível de qualquer um de nós.
Saliento que este estabelecimento teria cerca de oito décadas de existência. Trabalhando ao lado, foi, para mim e para outros em redor, uma surpresa completa. Ninguém imaginava um desfecho destes.
Quem anda por aqui há muitos anos vai ouvindo ali, vai juntando acolá e, facilmente, acaba por saber que a situação financeira de quase todos os comerciantes são similares. Em metáfora, é como se todos estivessem num lago de ácido. Uns terão apenas os pés, outros mais acima, outros até à cintura, outros até ao pescoço e ainda outros, como o “Manel” que estão a submergir completamente. Em suma, todos estão com os pés no dissolvente. Será apenas uma questão de tempo, mas, ninguém pense o contrário, este mesmo tempo que agora se esgotou para o Magalhães assim se esgotará para outros.
É um discurso demasiado radical e pessimista? Tenho a certeza de que é, mas levando em conta as políticas que vêm aí, com um ataque frontal ao consumo e, através da subida de impostos, às margens do rendimento disponível das famílias, ninguém espere milagres. O comércio vai colapsar e ruir fragorosamente como um castelo de cartas. Começa a não haver dinheiro para fazer face à Taxa Social Única e aos impostos. Eu sei do que falo.
Porém, mesmo inferindo desta onda que alastra, pensamos sempre que os pequenos negócios, mesmo mal, se irão safando. A ideia que perpassa é que a administração fiscal sabe muito bem o que se está a passar e terá alguma contenção no aperto de pagamento de impostos. Pelo menos é a esperança que prevalece.
Mas este caso da sapataria Reis, ao encerrar de um dia para o outro, dá para ver que para além do que é perceptível a olho nu há um outro mundo perdido no campo das emoções.
Sendo vizinho desta agora encerrada venda, no mínimo, agora, tentei prestar alguma ajuda ao Manuel Magalhães, sobretudo jurídica –ofereci-lhe os préstimos da minha advogada. O “Manel” recusou. Mais tarde falei com a sua filha e, com vários argumentos, também esta declinou a oferta.
O que poderá levar um cansado combatente, neste caso um experimentado comerciante, a, de um momento para o outro, a baixar a espingarda e, sem luta, a render-se ao destino? Na minha opinião, o cansaço, mas, acima de tudo, um valor que, no mundo ocidental, está muito em decadência e só os mais velhos a sublinham: a honra. Sabe-se, por exemplo, que no Japão ainda hoje a dignidade beliscada, a honra, é motivo suficiente para fazer o “haraquiri”, ou seja, um ritual de suicídio baseado nas antigas tradições dos guerreiros samurais.
Estou convencido que foi a impossibilidade de poder cumprir que fez baixar os braços ao Manuel Magalhães. Se assim não fosse, como entender que um inquilino, com uma renda antiga de menos de duas centenas de euros, entregue um estabelecimento, de mão-beijada e sem recurso a acção de despejo, ao proprietário com mensalidades vencidas e em débito em cerca de dois milhares de euros? Saliento que, quanto a mim, não há nada a apontar ao proprietário do edifício. Este apenas usou de uma prerrogativa de interesse legítimo. Certamente já bastou décadas e décadas a receber um valor baixíssimo –comparando com outras novas de milhares. A questão será onde vão acabar as consequências destas assimetrias, mas isso será para outro assunto.
Continuando na minha especulação, só a vergonha e a honra ferida dão para compreender esta atitude de não querer receber ajuda. Porque o Magalhães precisava desta assistência jurídica como de pão para a boca. Basta pensar que o local comercial era a sede de uma firma e, tendo em conta outras presumíveis dívidas, seria indispensável, a nível fiscal, pedir a, provável, insolvência e consequente extinção da empresa. Ora, a meu ver, nada disto foi feito, o que me leva também a supor uma grande carga de trabalhos baseada na ignorância. E a questão é: quantos velhos comerciantes ou industriais estarão na mesma situação? Será que, neste oceano de desconhecimento não se torna obrigatório criar um gabinete de apoio jurídico e psicológico aos velhos lobos do comércio? É que se nada se fizer, certamente, adivinhar-se-ão montes de complicações a nível fiscal para as suas vidas já de si tão carregadas de sofrimento, depressão e frustração.
Será que a autarquia, tendo em conta o momento gravíssimo que este sector está atravessar, não deveria colocar as mãos na massa? É óbvio que este apoio deveria calhar por inteiro às instituições representativas do sector, mas, sabendo nós que também elas estão no charco, sendo assim, para que mais miséria não subsista, a edilidade deveria dar apoio a todos os cidadãos que dele necessitassem.
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