quarta-feira, 25 de maio de 2011

HISTÓRIAS DA MINHA ALDEIA (37) -UMA BROA PARTIDA

(IMAGEM DE LEONARDO BRAGA PINHEIRO)

                 


                                                                    
                                                     I

 Na década de 1950, maioritariamente, a população de quase todas as aldeias vivia muito mal. A meia dúzia de anos saídos da Segunda Grande Guerra, em que Salazar, alto e bom som, proclamara que “livraria o povo da guerra mas não da fome”, a pobreza física e espiritual era uma constante.
Os rendimentos dos autóctones provinham essencialmente do “andar ao dia fora”, a trabalhar duramente de sol a sol para os lavradores mais abastados da povoação, e do cultivo de pequenas courelas, normalmente arrendadas aos primeiros a troco de uns alqueires de milho no fim do ano. Era destas pequenas leiras, umas de regadio e outras de sequeiro, que se retirava todo o sustento alimentar para toda a prole. Nas de regadio era semeado, e “posto”, feijão, cebolas, alfaces, couves, batatas e milho. Na terra de sequeiro, normalmente terreno arenoso, era cultivada a vinha, o trigo e a aveia.
A família, esteio desta colectividade conservadora e feudalista, era uma célula fechada e em que ninguém se intrometia. O chefe, o patrono, ganhava uma declaração de respeito no dia do casamento –tinha que ser mesmo abençoado pela igreja, senão seria apontado por todos. A palavra do chefe era lei no seio da estirpe. Pouco importava se era justa ou injusta. Pouco interessava se, à noite, depois de um dia malhado pelo calor tórrido e carregado de vinho, “esquinado”, os gritos saídos do pequeno casebre denunciassem uma tremenda sova na mulher e nos catraios, e até o gato levasse um pontapé. O aforismo, em jeito de religião, era que “entre marido e mulher ninguém metia colher”.
Os filhos, habitualmente em grande número, eram encarados pelo protector como uma mais-valia. Eram um instrumento de trabalho para conseguir um pecúlio e realizar o sonho do guardador: comprar as leiras que amanhava ao lavrador abastado. Para muitos, esta era a sua única fantasia. Naquelas cabeças duras não havia lugar para a formação intelectual dos descendentes. Se vieram ao mundo era para trabalhar nas terras arrendadas ou para ganhar dinheiro em serviços prestados ao latifundiário. Todo o dinheiro que os procedentes auferiam ia inteirinho para a carteira do pai. Era este que decidia o futuro financeiro de cada um, incluindo a esposa e mãe. Esta não tinha direito a poder comprar fosse o que fosse sem a sua autorização.
É neste ambiente pesado e de penúria que nasce João, em 1956, numa aldeola do centro deste Portugal esconso, atrasado, pobre de mais, e de fazer chorar um coração por mais empedernido.
Fosse lá porque fosse, desde cedo o miúdo começou a aperceber-se de tudo o que o rodeava e a detestar toda aquela rotina diária em sombra de assombração. Em longas imaginações aspirava ser um dia cantor ou alguém importante. Em longas noites de insónia, muitas vezes interrompidas pelo pai para ir regar o milho, o rapaz via-se a fugir dali, a trote, cavalgando um cavalo branco. Em muitas resistências ao apelo forçado do progenitor, muitas vezes, este carimbara o puto: “nunca haverás de ser nada na vida. Dormes muito!”. Tantas vezes João ouviu isto que, interiormente, gravou para si mesmo uma promessa: “um dia vou provar-lhe que está enganado!”.
Tinha o garoto cinco anos quando nasceu a sua segunda e única irmã, Etelvina. Veio ao mundo enfezada e muito doente. Fosse por isso ou não o catraio, perante a imagem da pirralha, jurou para si mesmo que a protegeria contra tudo e contra todos.
João era inteligente e antes de concluir a quarta classe a professora mandara recado para que os pais do menino lhe fossem falar. Foi a mãe. Perante esta, disse a mestra: “vocês deveriam fazer um esforço e colocarem o moço a estudar!”. Aquela argumentou que eram muito pobres e tal não seria possível. Para além disso, os seus braços eram necessários para ajudar na lavoura.
Mas o pequeno estava decidido a fugir dali a qualquer custo e não se deu por vencido. Com a ajuda de uma tia, escreveu a outro seu tio a trabalhar na grande cidade para que este lhe arranjasse trabalho e o ajudasse a largar tudo aquilo.

                                                   II

 Perante uma resposta positiva em carta na vinda do correio, em 1966, ainda com 10 anos, o rapazinho, acompanhado com o seu familiar e levando na mão uma saca de pano, dá entrada na grande urbe e tantas vezes arquitectada na sua mente como um cenário edílico de um qualquer filme de Hollywood… que nunca vira, obviamente.
No novo emprego, começou a ganhar um salário mensal de duzentos e cinquenta escudos, que iam inteirinhos para a casa paterna. Como estava em casa de uma sua familiar não pagava hospedagem. Era esta sua tia que lhe arranjava roupa em segunda-mão para vestir e que era lavada durante a noite para ser usada, outra vez, no dia seguinte.
No café onde João trabalhava uma empregada da copa interessou-se e recomendou-lhe que ele deveria estudar de noite. Como ele fizera 14 anos, foi com ele a uma escola profissional e matriculou-o num curso nocturno.
O pai, ao saber que o petiz estava a estudar, ameaçou vir à cidade e desinscrevê-lo do estabelecimento de ensino. Temia que o patrão lhe desse menos ordenado pelo facto de ser trabalhador-estudante. Com advertência do rapaz de nunca mais voltar a casa, o assunto, aparentemente, ficou resolvido.
Entretanto a irmã de João acaba também a escola primária e o pai de ambos pretende pô-la a trabalhar seja lá no que for. É preciso que entre dinheiro a qualquer custo. Depois de vários trabalhos, surgiu uma colocação num café de estrada, onde algumas mulheres, em passe, ganhavam a vida e o responsável pela menina não hesitou. Quando João soube foi imediatamente lá buscá-la.
O tempo foi passando e o agora adolescente está a trabalhar numa grande loja de comércio na grande cidade. Como sempre continuava a entregar integralmente o ordenado em casa. Nunca este presenteara o filho com uma interrogação assim: “como é que está a tua vida? Precisas de alguma coisa?”.
João, agora com 20 anos, decidiu casar e informa o genitor. Este compromete-se a pagar metade da boda. O noivo pede a um tio dinheiro para o fato.
Entrementes arrenda uma casa humilde, arranja emprego para a irmã na mesma loja onde exerce e esta vai viver para sua casa. Naturalmente que o ordenado desta vai inteirinho para a casa paterna.
João vai cumprir o serviço militar e, quando volta, todos os dias pensa que terá de “dar o salto” e arriscar num qualquer negócio. O problema é que o rapaz não tem “cheta”. Um dia, e ao fim de quase uma década, tem um aborrecimento com o patrão, pega no casaco e vai-se embora. Este, ressabiado pelo comportamento intempestivo, não lhe pagou. Passados dois dias estava a trabalhar num café de um amigo, o Daniel, a servir às mesas. De repente o rapaz descobre que, pelo grande movimento daquele pequeno estabelecimento, a hotelaria seria o futuro e a possibilidade de, trabalhando muito, apostar com certeza garantida e ganhar dinheiro. Mentalmente, todos os dias, ia desenhando o seu projecto de se estabelecer por conta própria.
Passados poucos meses, tinha João 25 anos, despontou uma possibilidade de negócio. Parte para a aldeia e pede a seu pai que o acompanhe para, juntos, irem pedir um empréstimo a um familiar próximo. O pai nega-se a acompanhá-lo. Argumenta que o rapaz estava muito bem onde se encontrava a trabalhar. João vai sozinho pedir o crédito.
Foi-lhe emprestado metade do solicitado. Um tio próximo e o sogro emprestaram-lhe mais algum e o amigo Daniel o restante.
E o homem saído há muitos anos da aldeia, com uma mão-cheia de dinheiro alheio, era agora empresário.

                                     III

 Trabalhando dias e noites, muitas destas sem pregar olho, vencendo todas as adversidades, João conseguiu pagar em pouco tempo aos seus benfeitores. Leva a sua irmã para junto dele e nomeia-a seu braço-direito. A vida corre-lhe bem.
Entretanto Etelvina, a irmã, depois de um período de namoro vem a casar. O marido trabalha num café. Como forma de agradecimento, João convida o cunhado para sócio num negócio de hotelaria a fundar. Este aceita e João, empregando lá uns milhares de contos, abre e faz sociedade a meias com aquele e com quota a realizar em lucros futuros.
Passado menos de um mês o cunhado despede-se da sociedade. Alega ser muita hora a trabalhar e que a vida é demasiado curta para ser levada assim.
Com todo aquele investimento realizado e agora perante a desistência, João fica possesso e atirará uma frase que, já anteriormente lhe fora inculcada por seu pai. Mais uma vez, provando que as palavras pesam e ferem como lâmina afiada, ficará marcada na mente do ex-candidato a hoteleiro: “ai não queres trabalhar? Pois olha que nunca serás nada na vida!”.
Esta tentativa de associação redundou em quebra de confiança. Etelvina e o marido acabaram por se despedir e regressarem à terra. Foram viver para a casa dos pais comuns.
Havia um tempo, morrera o homem do casal abastado que anteriormente emprestara algum dinheiro a João para se estabelecer. Como não tinham filhos e a viúva estava com mais de oito décadas, os sobrinhos desta decidiram convidar um casal para tomar conta da idosa a troco de, à sua morte, lhe ser atribuída a casa e o quintal. Porém, a idosa, talvez por nunca ter sido mãe, e também resultado de um tempo anterior de guerra e escassez, impunha condições espartanas aos seus acompanhantes. Entre várias premissas absurdas, para poupar, obrigava-os a ingerir comida já em decomposição. Para além disso, nunca os deixava usar a casa de banho interior. As suas necessidades fisiológicas eram feitas numa casinhota no pátio. Resultado, a mulher do casal não resistiu, apanhou uma grande depressão e, ao fim de vários meses, despediram-se deste regime medieval e a velhinha egoísta ficou só e entregue aos seus incomensuráveis bens materiais.
Dando a ideia de substituição à irmã, subscrevendo um contrato com as mesmas cláusulas obrigacionistas, João foi falar com a anciã. Esta aceitou e a casa ocupada com uma única pessoa passou a ter quatro –já havia um fruto do enlace.
Com muita entrega e sacrifício, estando prestes a desistir também pelo desânimo e pelas condições militares impostas pela mulher velha e insensível, o casal, meio exangue de cansaço físico e anímico lá foi aguentando. Estando quase a render-se e a perder tudo por opção, eis então que o destino decide bafejá-los em sorte, a velhota morre –como curiosidade, para tentar entender a alma humana, depois desta senhora ter falecido, para além de ter deixado muitos milhares de contos no banco para os herdeiros legítimos e mais de uma vintena de grandes propriedades, pelo casal esforçado, e em prenda ocasional, foram encontrados cerca de três mil contos em notas do Banco de Portugal e já fora de circulação.
João, embora irmão, mas agindo como pai, tal como sempre fizera, foi acompanhando a par e passo a evolução da vida familiar da sua única irmã.

                                                  IV

  Entre várias altercações que João tivera com o pai, acerca do facto de nunca se preocupar em ajudar os filhos, aquele respondia: “não vou levar a riqueza comigo. Eu estou a poupar para vocês… será que não vês?”. De pouco valia o rapaz aduzir que o que importava era ele em vida amparar os filhos. Era agora que eles necessitavam. Depois dele partir, um dia, às tantas ainda iria dar confusão. Mas o homem não ia em conversas e continuava fechado à solidariedade de repartimento.
Em 1996 morre. Depois de ter levado uma vida profundamente austera, de grande poupança e sacrifício, e de praticamente pouco ter viajado, a não ser uma ou outra excursão à Santa Maria Adelaide, ao logo da sua existência fora adquirindo várias parcelas de terreno. Uns vinhais aqui, uns pinhais acolá, mais umas leiras naqueloutro. E uma boa casa reconstruída havia umas décadas atrás.
A viúva, mãe de João e Etelvina, ainda estava de muito boa saúde e, incansavelmente, como fado predestinado, trabalhava pelos campos.
Passado pouco mais de um mês do falecimento, a irmã de João propõe a partilha de bens.
De pouco valeu ao homem tentar demonstrar que a repartição poderia ser feita um dia mais tarde quando a mãe se fosse. Porquê a pressa? Interrogava. Porque não continuava tudo na mesma? No seu entender, estando a mulher, mãe de ambos, de boa vitalidade era aborrecido estar a realizar divisões materiais e assim a separá-la de coisas que constituíram o seu mundo terreno, invocava João. “Não senhor, convinha ser já porque se ia cuidar das terras, estas, pelo amanho, mais tarde passariam a valer mais”, contra-argumentava a familiar directa.
Tudo bem. Combinaram então que Etelvina se encarregaria de contactar dois avaliadores à sua escolha. Acertaram antecipadamente que João ficaria com a casa paterna e a irmã com os terrenos. Como a mãe estava a viver na casa, e só anos mais tarde o rapaz viria a usufruí-la, acordou-se que a haver diferença financeira entre a habitação e os terrenos essa margem seria paga à irmã na hora do falecimento da mãe. Porém, ressalvou-se que o beneficiado pela casa, sempre que quisesse e pudesse, iria avançando algum dinheiro e assim se iria antecipando ao final.
Profissionalmente, João era agora avaliador de arte. Estava habituado a lidar com guerras surdas e agressões entre irmãos por causa dos bens legados por ascendentes que tantos suaram para os conservar. Para si próprio, em analogia, jurara que jamais iria acontecer o mesmo consigo e a sua única irmã. Afinal sempre foram grandes amigos, pensara.
E vieram os dois ajuizadores contratados para cotarem todos os bens materiais. Para além destes dois técnicos estavam presentes os dois legítimos herdeiros, João e Etelvina, e o marido da irmã. Começaram nos terrenos. Um pinhal por 50 contos, uma vinha por 20, um terreno de construção por 100… e que anteriormente se pedira 2000 contos. A todas as opiniões formuladas o herdeiro-varão aceitou sem recalcitrar. Chegaram à casa de habitação, que caberia a João, e os dois examinadores avançaram um preço. O marido achou pouco. Os peritos, talvez estranhando, olharam um para o outro, fixaram João e, meio titubeante, replicaram: “mais 500 contos?”. E João concordou. Afinal, para ele, era ponto assente que não se iria chatear por causa da herança. Bem no fundo, nos interstícios cavernáculos da alma, detestava tudo o que estes bens simbolizaram para a sua existência.
Escreveram num papel branco o valor das parcelas e João não se preocupou em fazer escritura. No seu entender, tal como seu pai afirmava muita vez, a palavra valeria mais do que todo o dinheiro do mundo. Além de mais, que diabo, eram irmãos e amigos.

                                                    V

 O tempo foi passando e o rapaz, sempre que a irmã pedia, ia dando dinheiro à conta da diferença marginal. Estávamos em 2001. Tinham passado dois anos e já tinha dado 900 contos. Mais uma vez, e repetindo o anterior procedimento, por volta do mês de Agosto, João recebeu um telefonema da familiar, precisava agora de 500 contos.
Aconteceu que, poucos dias antes, o rapaz emprestara tudo o que tinha ao seu amigo Daniel, uma vez que até aí fora este que o ajudara sempre. Desta vez invertera-se os papéis e fora João que socorrera o amigo.
Ora está de ver que a solicitação não poderia ser satisfeita por impossibilidade financeira. A rapariga ficou fora de si: “o quê? Então deves-me dinheiro e vais emprestar aos de fora?”. Vociferou através do auscultador.
De pouco serviu ao irmão lembrar que o que fora anteriormente acordado não fora assim. Nada disso. Ela nunca fizera nenhuma combinação parecida. Até porque era uso e tradição na povoação, sempre que havia partilhas, pagar imediatamente a diferença, enfatizava a mulher.
João lembrava que, contrariamente a sua irmã que recebera e podia dispor da sua parte, ele não tinha nada na sua posse. A casa estava a ser legitimamente ocupada pela mãe e nem sequer fizera escritura de partilha. Isso não interessava nada, retorquia a irmã. Tinha que pagar o que devia, marcava-se a escritura e pronto! Ficou combinado que até ao próximo Janeiro de 2002 seria tudo liquidado e seria feito o registo público notarial.
Estava lançada a semente do diabo naquela relação de mais de quatro décadas. Era como se dividisse uma broa ao meio em corte profundo.
Em Janeiro e antes de 31, através do telefone, João recebeu um ultimato do cunhado: “ou vem imediatamente regularizar o débito ou fica tudo sem efeito”.
Contactou-se a mesma advogada que se encarregara do inventário e esta chamou a si o encargo de marcar a escritura. Verificou-se que uma parte de terra não tinha sido incluída e foi pedida às finanças uma alteração ao arrolamento. Passaram dois meses e, aos olhos da irmã e cunhado, este prazo estava a ser intencionalmente prorrogado pelo irmão. Avocava o casal em telefonema acusatório à causídica.
Veio a data da escritura previamente marcada. O casal não compareceu. “Porquê? Interroga o homem para a irmã. “Não assinamos a escritura, porque agora a casa já vale mais do que os terrenos”, invocaram em coro.
João ficou branco de indignação e ameaçou-os com tribunal.
Perante os lamentos de sofrimento da mãe, o homem deixou correr o tempo e nunca mais se importou com o caso.
Passaram meses, talvez um ano. Entretanto o rapaz recebe um telefonema da advogada encarregada anteriormente de marcar o registo a avisar de que fora contactada por um colega a avisar de que os seus clientes estariam na disposição de exarar a escritura.
Depois de realizada o acto notarial e recebido o respectivo remanescente num ambiente de cortar à faca, passado pouco tempo e sem que João o solicitasse ou fosse avisado, Etelvina mudou a residência da mãe de ambos para sua casa.
João não se manifestou, até porque entendia que, apesar da sua mãe se locomover bem, naturalmente que estaria muito melhor ao pé de sua filha. Pelo facto de a sua reforma e parte do marido, e pai de ambos, terem transitado para a conta de Etelvina o homem também não ligou. Afinal seria a justa retribuição pelo acompanhamento diário.
Fosse talvez pelas marcas profundas de uma infância pouco feliz ou não, a verdade é que João sempre foi muito desligado da mãe. O rapaz sentia aquele cordão umbilical invisível que a todos liga a quem nos pariu, mas havia um grande conflito que o atormentava. Talvez esse sentimento consumasse alguma frieza na relação com a mãe. Talvez Freud explicasse melhor, mas era como se, implicitamente, João culpasse a mãe por não ter intercedido tantas vezes junto de seu pai para que este lhe valesse em horas de aflição.
João, volta e meia, ia à aldeia à sua casa, já de facto e de direito, e ia visitar a sua progenitora a casa de Etelvina. Sempre que entrava naquela casa era como se ele fosse um terror de assombramento. O desprezo pela sua pessoa era quase total. Às saudações de “bom dia” ninguém respondia. Com o tempo, a filha mais velha do casal e sobrinha de João, transformou-se numa espécie de chicote de ofensiva. Era normal lançar piadas de mau gosto. O rapaz optava por ignorar.

                                                 VI

 Em 2007 a mãe de João e de Etelvina, naqueles acidentes que acontecem a quem tem quase oitenta anos, deu uma queda e ficou ligeiramente abalada psiquicamente. Durante uns dias, acompanhada pelo médico, esteve acamada e sem reconhecer ninguém em casa da filha. No dia da queda João foi avisado telefonicamente. Por motivos alheios à sua vontade, ou, sabe-se lá, pelas explicações psicanalíticas de Freud, só foi ver a mãe passados dois dias. Quando entrou na casa de Etelvina a sua percepção foi a mesma de quando um presumível culpado por todos entra no julgamento. Se os olhares de todos os presentes naquela casa matassem, O filho da mãe agora acamada cairia fulminado imediatamente.
João e a esposa entraram para o quarto, onde se encontrava a doente, acompanhado de todos, irmã, cunhado e sobrinha, e verificou que aquela estava muito condoída psicologicamente. De repente, sem que nada o fizesse prever, como bando de pássaros assustados numa catedral, o cunhado começa a insultá-lo com ferocidade. “Você não quer saber da sua mãe. Você é um garoto. Você não presta para nada. Você disse-me um dia que eu nunca haveria de ser nada na vida… mas olhe que sou e até cuido melhor da sua mãe do que você!”. João cerrou os dentes, talvez porque entendesse que naquele desabafo estava sobretudo um ressabiamento, um recalcamento acumulado durante mais de vinte anos, e tentou não reagir. Mas o cunhado, como se estivesse imbuído de um poder castigador e de espada em punho a espetar a sua frustração, continuava a agredir verbalmente cada vez com maior crueldade. João virou-se para ele e recomendou que o queixoso tivesse em conta o estado físico da mãe, mas o ressabiado ainda crescia mais em afronta. João “passa-se” põe-lhe a mão à “labita”, mas o homem, talvez temendo pelo físico, soltou-se e deu em fugir pela casa fora e perseguido pelo cunhado. Lá de longe, como se estivesse a falar num megafone, proclamava: “Você nunca mais aqui põe os pés para ver a sua mãe! Está a ouvir?!”.
Perante aquele caso, e sobretudo as palavras cobardes, João virou-se para sua irmã e sentenciou: “resolve lá com o teu marido e como é que queres fazer, mas eu preciso de vir visitar a mãe sempre que eu queira. Se me proibirem de entrar aqui para a ver, ficas a saber que assim que ela recuperar irá para minha casa, para a cidade!”.
Etelvina, certamente dividida, entre a lealdade necessária ao marido, os laços de consanguinidade e, provavelmente, também pela possibilidade de vir a perder a reforma mensal, que no fundo constituía um pequeno ordenado, hesitou e garantiu tentar acertar com o companheiro. Prometeu que proximamente telefonaria.
Passados dois dias ligou. Estavam de acordo que o irmão visitaria a mãe, mas as vistorias teriam de ser rápidas e sumárias.
Sem que nada lhe fosse pedido, João combinou que, a partir dali, tendo em conta o estado de saúde da mãe, começaria a dar uma mensalidade.
A partir daqui as visitas feitas à anciã naquela casa passaram a ser um quadro surreal. Como já era hábito, nunca ninguém respondia às saudações logo ao abrir da porta principal. As feições de contrariedade eram perfeitamente visíveis. As provocações surdas, em jeito de piadas, eram constantes. O tempo médio de duração de visita, certamente, seria de dez minutos. Perante aquele cenário de negatividade era impossível permanecer mais tempo. A mãe de João, sentada num sofá, sempre que aquele a visitava em rápido, de olhos semi-serrados, em constatação, questionava: “estás aqui tão pouco tempo ao pé de mim, filho!”.
Há cerca de dois anos o estado da velhinha piorou e passou a exigir mais cuidados. João interrogou a irmã se não seria melhor, para dividir o esforço, que a mãe estivesse um mês na sua casa de aldeia e outro na cidade. Etelvina respondeu que fazia gosto em tomar conta da mãe até ao último suspiro. João, valorando muito este gesto de carinho, respeitou a sua vontade e aumentou para o dobro a sua comparticipação na ajuda mensal e a somar à verba da Segurança Social. Mesmo assim o clima de hostilização não diminuiu. Antes pelo contrário, pareceu ter aumentado. De tal modo que no último ano, João só quase que lá ia uma vez por mês para pagar à irmã e visitar a geradora de vida. Não havia o mais elementar clima de respeito pela visita que seria um elemento necessário entre mãe e filho.
Nos últimos tempos, na aldeia, João começou a aperceber-se de uma certa manipulação de sentimentos dos residentes. Ou seja, implicitamente, era como se os naturais do lugar, sem o dizerem claramente, sentissem e o expressassem por pequenos nadas que o homem não queria saber da sua criadora. Eram frases curtas, mas que deixavam antever o pensamento dos locais.
Até que, como tudo o que vive, naturalmente a octogenária faleceu. A comunicação feita, pelo telefone, pela sobrinha, foi assim: “é para dizer que a sua mãe morreu. A minha mãe já tratou do funeral!”… e mais nada.
A teatralização em volta do sofrimento de perda foi uma constante, sobretudo de modo a sublinhar a falta de atenção de João para sua mãe.
Logo, em primeiro acto, quando o homem chegou à capela, local de exposição do corpo, Etelvina, em grande choro atirou: “ó mãe… está aqui o teu filhinho, mãe! Nunca mais vais voltar a perguntar por ele… mãe!”.
Na noite de velório a encenação continuou. Era como se, em metáfora, cada ataque de choro, com palavras entrecortadas, fosse uma saraivada de balas dirigidas e ensaiadas no efeito provocado nos existentes. O objecto final, calculava João, era sublinhar aos presentes na pequena capela: “nós é que gostamos muito de ti, mãe… ele nunca te ligou nenhuma!”.
No dia do funeral, e depois da oração de encomenda, entendeu João fazer duas homenagens sentidas, uma à mulher que partia, que, dentro das suas possibilidades, foi a madre possível, e outra à sua irmã Etelvina, pela forma como, apesar de ser a sua opção, sempre tratou de sua mãe”. E pediu aos presentes uma grande salva de palmas.
Após a ovação, ouviu-se uma voz feminina: “se tivesse vergonha, estava calado!”.
O rosto impassível da mulher que partia do reino dos vivos e da maldade maquiavélica associada não se manifestou. Não se sabe se por já estar habituada se por não poder pronunciar-se.

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1 comentário:

João Neto disse...

O que vale é que o João é forte e inteligente e sabe o que é bom da vida! Parabéns! Excelente trabalho, primo!