sábado, 25 de setembro de 2010

UM AMOR PARA TODA A VIDA

(IMAGEM DE LEONARDO BRAGA PINHEIRO)










 Era Maio de 1945. As macieiras estavam em flor. Os passarinhos cantavam. Um grilo ensaiava uma composição em si maior. O sol despontava em calor ameno próprio da primavera. A quietude nos campos das faldas da Serra da Lousã era paradisíaca. De repente tocou o sino a rebate no campanário da igreja de Nossa Senhora. Os trabalhadores nos campos em movimento repetido com as enxadas, perante o som intempestivo de alerta ficaram com a ferramenta suspensa entre o ombro e o chão de terra batida.
“O que aconteceu?”, foi a pergunta mais repetida entre suores escorridos nas testas rugosas e intermediados por um golo de tinto bebido directamente do quartilho que correu de boca em boca. “Acabou a guerra!”, alguém respondeu. Ao longe ouviram-se foguetes a estalejar e a romper o céu da tarde.
À mesma hora, ali próximo, na aldeia do sopé, entre gritos de rebeldia, do ventre de Isaltina, nascia Rosa Maria. A menina era a benjamim de já muitas irmãs nascidas e que à mesma hora cortavam erva para os gados ou batiam a terra dura com afinco e raiva, porque de raiva era feita a vida diária desses tempos difíceis.
Rosa Maria era uma criança alegre e viva. Era um anjo de encantamento para a vizinha Etelvina. Idalina, irmã de Rosa, já feita mulher, há muitos anos estava prometida ao seu filho mais velho. “Ai gosto tanto desta Rosa, alegria dos meus olhos”, quem dera que ela casasse um dia com o meu Luís Miguel, o meu mais novo da prole e da mesma idade. Este pensamento tantas vezes foi martelado que um dia disse a Isaltina, mãe da menina: “porque é que não os prometemos um ao outro?”. Se melhor o idealizaram, melhor o fizeram. Perante Deus como testemunha, juntaram as duas crianças, colocaram uma mão de uma sobre a mão de outra, ataram-nas com uma ligadura branca, ungiram-nas com azeite virgem e fizeram umas rezas. Estava consumada a promessa de amor futuro de Rosa Maria com Luís Miguel. A partir de ali as duas crianças estavam prometidas em altar sob a égide de Nosso Senhor Jesus Cristo.
Fosse lá por isso ou não, a verdade é que os caminhos de Rosa eram sempre atravessados por Miguel. Eram como unha e carne de gente feliz com futuro traçado. Rosa sonhava com Luís e este fantasiava com Rosa. Uma era a Lua e o outro o firmamento. A natureza só concebia a sua existência conjunta. Rosa, a jogar ao lencinho e à macaca, só tinha olhos para Miguel. Este, a jogar ao pião e ao botão, no seu pensamento estava apenas concentrado na sua Rosa, flor da sua existência ainda curta de vida, mas longa em ilusão de amor.
Veio a adolescência e as necessidades carnais de Luís aumentaram da mesma forma que as borbulhas e os pêlos no rosto se multiplicavam. Havia um problema. Rosa não permitia grandes avanços. “Não podemos, é pecado. Só depois de casarmos!”, repisava a rapariga até desgastar a frase recomendada tantas vezes por sua mãe à luz de uma candeia alimentada por petróleo.
Do outro lado da aldeia, Gabriela, moça madura, com mais uma dezena de anos do que Miguel, andava fisgada no miúdo. O tempo já começava a pedir meças e, por lá, já se começava a falar. Daí até fazer olhinhos a Miguel foi um passo. E até fazer um pequeno passeio até ao meio das urzes outro passo. E Luís entra dentro de Gabriela e esta fica prenha de promessas de um novo futuro ao lado do rapaz.
Perante o falatório e as noites mal dormidas de Miguel, Rosa foi peremptória: tens de casar com ela. E o rapaz casou.
Rosa apaixonada virou Rosa sentida, mas ninguém sabia. Só seu coração sangrava abundantemente e, só quando só, os olhos de Maria lacrimejavam de dor e sofrimento, como só um condenado conhece o penar por dentro.
 Acabou por casar com João, porque era preciso acautelar o tempo e o povo não tinha dó de mulher só. Vieram os filhos, mas o tempo, esse tempo que contrariamente ao que se dizia não curava tudo, nunca apagou aquela chama que ardia sem se ver no interior do peito de Maria. Apesar de tudo Rosa estimava João e o tempo, a correr no tempo, foi sempre um laivo de saudade para esta mulher. Mesmo quando passava pelo seu antigo namorado e sempre, sempre, paixão, e o coração disparava de emoção, Maria nunca se deixou levar pelo desejo pecaminoso. Casou com o sofrimento e a dor há-de acompanhá-la até à cova. Tudo corria naturalmente sem emoções e sem perdições.
Há quinze anos o seu marido João, que trabalhava numa grande empresa em Coimbra, em despedimento colectivo foi para uma nova profissão: desempregado. Desgostoso, sabe-se lá porquê, agarrou-se ao álcool como náufrago se agarra a tronco de árvore em alto-mar. Os laços entre João e Rosa, que nunca foram teias entretecidas nem enlaces de amor, começaram a desfazer-se. A estima que Rosa nutria pelo homem começou a descambar. Esta, vá-se lá saber o motivo, num dia de forte discussão confessa ao marido o grande amor da sua vida: Miguel. O marido João, ao descobrir o amor íntimo da esposa, parte para a ofensa verbal e entra em desespero. Ameaça-a com uma arma que possui como caçador.
Rosa tem medo e teme pelos seus dias. Só pede a Deus que, por causa do álcool ingerido dia e noite, João fique entrevado e que assim perca a agressividade latente. Maria, mulher de Deus, esposa de homem só, casada com a angústia, nunca irá largar João. Este foi o destino e destino é fado e este, predestinado, cumpre-se, não se muda.

(HISTÓRIA BASEADA EM FACTOS REAIS)

6 comentários:

Ana "Strobe" Mendes disse...

Lindo o seu post...sabendo que advém de uma história real tocou-me de modo especial. Gostava de saber como lhe caem no colo estes contos vividos na primeira pessoa.
Descrição muito doce de uma vida vivida de forma tão amarga.
Beijo.

Jorge Neves disse...

Como disse alguem "Cão que ladra não morde", mas um dia pode morder e depois já é tarde.

Anónimo disse...

Bonito conto,Luís.É uma história de amor que fez lembrar alguém.Até imprimi para lhe dar(não me peça direitos de autor),e a referida pessoa disse-me que a «Rosa» poderia muito bem ser ela.
Marco

LUIS FERNANDES disse...

Obrigada, Ana. A menina é mesmo uma querida. Coloquei a sua questão e primeira página e respondi lá, senão se importar, vá lá, pode ser?
Muito agradecida, mais uma vez pela sua generosidade.

Sónia da Veiga disse...

Enervam-me os finais tristes, especialmente quando se devem às convenções e às outras pessoas e ao que vão pensar e dizer...
Mas a história foi mesmo muito bem contada! Como sempre...

Anónimo disse...

Bem contada ... e bem real!
As coisas que tu sabes ... e a forma soberba com que a transmites
...

Li a história, não resisti a fazer este comentário.