sábado, 11 de setembro de 2010

"JURA AMAR NA ALEGRIA E NA DESGRAÇA?"


(IMAGEM DE LEONARDO BRAGA PINHEIRO)











 Quando penso numa relação a dois, num casamento entre homem e mulher, inevitavelmente vem-me à ideia os meus pais –tenho a certeza de que todos seremos assim. Para o bem e para o mal, nós como agulha magnética que aponta para o Norte, sempre recordaremos os nossos progenitores como referência.
Curiosamente, por volta de 1960, teria eu uns quatro, cinco anos, lembro-me, num quadro mental que poderia dar uma bela pintura naturalista, de estarmos os três sentados à lareira a cear. Numa grande bacia de barro vermelho o bacalhau, aos pedaços, misturava-se com as batatas cozidas e regadas por um azeite saboroso, sem acidez e feito no lagar junto ao rio, na ponta oeste da aldeia. Como testemunha muda deste aparente quadro edílico de família feliz estava o fogo a crepitar.
O meu pai, depois de um longo dia, a cavar a terra seca e barrenta e ser chicoteado pelo Sol ardente, em que se alimentava mal, de uma sopa frugal, e nos intervalos de broa cozida pela minha mãe no forno das traseiras da nossa casa, e uma cebola cortada em quatro com sal, chegava à noite “esquinado”, como se dizia à época. Esta forma adquirida consistia num estado de embriaguez acima do vulgar “beber uns copos”. Consideremos que, no caso do meu pai, que era uma pessoa introspectiva e triste, uma bebedeira teria dois estádios: o primeiro, depois de beber muitos copos, dava para ficar alegre, em oposto ao que era no dia-a-dia, ria e achava graça a tudo. O segundo estágio, o de “esquinado”, seria quando bebia muito mais do que o que seria previsível e então, em contraposição à anterior etapa, em que ficava alegre, tornava-se ressabiado, frustrado e agressivo. Sem qualquer motivo plausível batia em tudo o que mexesse à volta: no gato, em mim, na minha mãe. Nunca entendi muito bem nem a razão destas mudanças de carácter tão opostos e muito menos o que lhe daria origem. Mais ainda: como é que a minha progenitora, em diagnóstico precoce, conseguia determinar qualquer um dos períodos.
O que sei –talvez pareça estranho mas é verdade- é que me lembro, como se fosse hoje, de pensar: "eu nunca irei ser assim. Nunca me embriagarei e jamais baterei um dia na minha mulher". A verdade é que, se na época era comum dar vinho às crianças para desenvolver o físico e a inteligência, eu, nos anos posteriores, sempre me neguei a ingerir álcool: argumentava que tirava a inteligência. Ignoro onde fui recolher este fundamento. Estou certo que o teria ouvido em qualquer lado e baptizei-o como sendo meu. Fosse por isto ou por outra coisa qualquer, para além de beber pouco, até hoje embebedei-me uma única vez. Na violência física também não me tornei adepto.
Tenho gravado na memória o ar impassível como a minha mãe apanhava as bofetadas. Talvez a cumprir o aforismo de que “quanto mais me bates mais gosto de ti”, a verdade –vá-se lá entender o por quê?- é que foram um casal uno até à morte do meu pai, ocorrida há cerca de uma década. Talvez por falta de cuidado, e agora já não irei a tempo, nunca perguntei à minha mãe se era feliz. Especulando, talvez não seja difícil de entender que, pelo menos naquele lar, não existia um conceito abrangente de “felicidade”. Provavelmente estar feliz seria ter qualquer coisa para comer, dar erva ao gado, deitar-se à noite na cama, e, estafada, abrir as pernas ao meu pai e sei lá que mais.
Os tempos mudaram. As ligações sentimentais passaram a ser contratualizadas em lei. Para além da promessa religiosa, sacramental, no altar “jura amar na alegria e na desgraça”, passou a legislar-se o modo maritalmente de viver em comunhão de facto ou de direito. Sobretudo, porque partindo do princípio de que a mulher, entre os dois, é o ser mais fraco, para a proteger. Hoje a violência doméstica é um crime público –quer dizer que, para além de qualquer cidadão, independentemente do género, poder denunciar às autoridades, e desde que se prove, em princípio, a queixa só acaba na barra do tribunal, mesmo em caso de desistência da vítima.
Ora, sendo assim, com toda esta protecção jurídica aos entes, somos levados a pensar que as relações de amor ou desamor se tornaram mais racionais. Será assim? Infelizmente não é. Só este ano já morreu às mãos dos seus companheiros mais de 20 mulheres e alguns homens por força das suas companheiras. Só aqui em Coimbra, por ano, há cerca de 500 participações por violência doméstica
Então, surge a pergunta: o que é preciso fazer para humanizar as relações? Se calhar, talvez no primus, no master, de todas as correspondências em sociedade, é urgente apostar na educação. Não tratar os sentimentos em forma de mandamento cristão, mas ir à génese relacional, começar a ensinar na escola básica o a, e, i, o, u às crianças na mesma forma que se ensina a ler.
Vivemos num tempo em que –a começar por mim- parece que todos sabemos tudo. De facto, comparativamente com o tempo dos meus pais, hoje temos uma percepção generalizada de tudo o quer se passa à nossa volta, a nível global, mas, intrinsecamente, no fundo, no âmago das coisas, não conhecemos nada. Somos assim uma espécie de nefelibatas, andamos nas nuvens, que lá de cima, olhando cá para baixo, parecemos ver tudo, mas em grande plano, sem nenhum conhecimento dos pormenores.
Creio que é preciso construir uma ponte de sentimentos entre os anos de 1960 e os dias de hoje, assente na tolerância e na partilha. Se naquele tempo, talvez pela carência de tudo, a repartição surgia naturalmente, e mesmo na falta de respeito pela mulher, esta, mesmo em condições adversas, através de pequenos truques, sabia levar a água ao seu moinho. Nos nossos dias, se por um lado não há partilha interpares, por outro, parece que ambos perderam o “poder de encaixe”.
O vulgar lar, a chamada casa de família, onde em tempos recuados houve alguma paz –ainda que fosse mais a aparência acessória do que a substância-, nos tempos que correm, está transformado num cenário de guerra, onde o que importa é que os interesses de um se sobreponha ao do outro. Qualquer intenção serve de arma de arremesso, os filhos quando menores, a ofensa simples, a agressão dissimulada, tudo é admissível desde que a outra parte vá ao tapete. É preciso é que o sofrimento em forma de tortura marque o outro e, passo-a-passo, de uma forma calculista, se chegue até ao derramamento de sangue.
 Custa a entender como é que pessoas que, veneradas como anjos, durante décadas, se amaram em longa história de amor, vivendo coisas boas e más, foram generosas uma com a outra, conceberam os filhos, de repente, se transformam em seres irracionais, cobras repelentes, onde só o ódio conta e absolutamente mais nada. Estranho também, é que estas pessoas foram baptizadas, casaram pela igreja católica, continuam a ir à missa ao Domingo e, contra aquele que é o pai dos seus filhos –ou vice-versa- procedem como um combatente numa batalha fratricida.
Talvez valesse a pena pensar nisto…

 













 

4 comentários:

Ana "Strobe" Mendes disse...

Olá Luis.
Bom, devo começar por dizer que me sinto extremamente lisonjeada por este pequeno “duelo” de pensamentos, no bom sentido é claro.
De facto tudo o que diz é verdade, antigamente tudo era por demais violento e ainda assim o quadro familiar passado para o exterior do lar era sempre algo bonito e venerável. Como é possível que nos dias que correm, não havendo sequer metade de toda a tolerância e submissão outrora vivida pelos nossos parentes, ainda hajam casos de tamanha violência? Penso no mesmo constantemente, e a verdade é que não existe uma reposta unívoca sobre esse tema, teríamos de analisar um problema que se consta multivectorial para se chegar à origem do que são os problemas relacionais!
Poderíamos perder horas a tentar analisar os factos de que dispomos e que são de conhecimento público, mas será que chega? Basta pensar um pouco e desencadearíamos uma lista infindável de causas possíveis para o problema enunciado.
Poderíamos começar com a parte da psicologia, por ex. Uma das minhas grandes amigas, por sinal psicóloga, costuma dizer-me algo extremamente interessante, óbvio que num jeito um pouco jocoso, mas obviamente sem particularizar, sabe como é, piadas de café que nada servem senão para rir um pouco. Mas temo que em boa da verdade o que ela me diz tenha um lado muito forte. A maior parte das pessoas que nós vulgarmente achamos que são doentes mentais (e não vou assentar este meu comentário sobre o que são doentes mentais) de algum modo são-no devido a uma infância (peço desculpa pelo vocabulário) do caneco. É obvio que é muito bonito desculpar estas pessoas, ah e tal teve uma infância difícil, mas será tudo isso serve de desculpa para se cometerem os actos horrendos que se têm vindo a observar? Claro que não. Tudo isto para se chegar onde. Os tempos mudaram, a liberdade de expressão tornou-se um direito e os preconceitos que envolvem questões familiares foram-se desvanecendo. Mas, existe algo que não muda só porque hoje temos muito mais liberdade, as infâncias do caneco, os exemplos de vida que muitos tendem a ignorar. Dizer-se que somos todos iguais acho um pouco eufemista, não somos todos iguais, somos seres embora geneticamente semelhantes, mas com algo que nos diferencia individualmente, o nosso belíssimo cérebro, é nele que assentam todos estes problemas. Se o Luís nunca teve problemas devido à infância que me descreveu, talvez seja porque conseguiu resolver todos os seus conflitos internos, ou talvez nunca os tenha gerado. O problema começa quando se criam esses tais conflitos, na maioria, inconscientes! Bem, não vou aprofundar este meu comentário senão ainda tenho a ordem dos Psicólogos à perna.
Enfim, e terminando este meu comentário que já está por demais exagerado, continuo a enunciar a teoria de Darwin, seguindo um pouco a linha de pensamento que trazia de trás. Todos estes problemas que nós observamos são resultado de um estado comum, a evolução da espécie, outrora um pouco mais autómatos (no tempo dos nossos familiares) devido ao cumprimento religioso da conduta social da época, hoje em dia isso já não acontece, o ser humano tem-se vindo a desligar desse automatismo e a comportar-se conforme as suas necessidades interpolando as necessidades alheias, como disse e muito bem, mas isso não implica que tenham deixado de existir as tais infâncias do caneco!

Abraço Luis…:)
P.S.:Irei colocar este meu comentário no meu bolg, acho que poderá tornar-se um tema de debate e quem sabe se alguém se junta a nós nesta discussão..

LUIS FERNANDES disse...

Obrigada, Ana, pelo seu excelente comentário. É um gosto ler o que escreve.
Abraço.

Anónimo disse...

Amigo Luís,a primeira parte do seu excelente texto e,simultaneamente, retrato actual de grande parte das familias portuguesas,poderia perfeitamente ter sido escrito por mim.Apenas com uma pequena excepção:não tenho a sua correcta atitude em relação ao alcool,e apanhei várias «bebedeiras»(não tenho nenhum orgulho nisto).
Não vou aprofundar mais este aspecto pessoal do tema,visto não ter qualquer interesse para os outros.Apenas queria dizer que é um retrato familiar mais comum do que possamos imaginar,atingindo todas as classes sociais.É um cliché mas aplica-se na perfeição ao tema em discussão.
E claro que tem consequências,pois nós somos o resultado não só da educação que tivemos,mas também das vivências e experiências desde a infância.
Para terminar gostava de dizer que temos de denunciar todas as situações que potencialmente poderão ser perigosas.Já lá vai o tempo em que se afirmava que entre marido e mulher não se mete a colher.Luís,como sempre bom texto actual.
Marco

Anónimo disse...

Muitas das situações que degeneram em tragédias são «culpa» das mulheres e esposas.O que quero dizer com isto?Não é uma critica,é apenas uma constatação de algumas situações.A mulher sempre na esperança de a relação melhorar vai adiando o confronto com o agressor,não tomando a iniciativa de se queixar ás autoridades ou de deixar o lar.Por vezes isto é fatal,tem resultados trágicos.
Talvez seja resultado da educação conservadora,do receio e vergonha da reacção dos outros,etc,principalmente em aglomerados populacionais mais pequenos e rurais.Em resumo,temos todos de fazer a nossa parte:denunciar e apoiar as vitimas.
Marco