(IMAGEM DA WEB)
Como leitor de livros, tenho a certeza: sou um tipo esquisito. Adoro entrar numa qualquer livraria ou alfarrabista e comprar um título. Terei centenas, milhares, sei lá! O que não encontro explicação é que uma grande maioria deles jaz abandonados na estante, e os últimos em cima da mesinha de cabeceira, sem nunca ter passado das primeiras vinte páginas. Começo a ler as primeiras linhas e estas, como luz de desejo ao fundo de um obscuro túnel, terão de me espicaçar e empurrar a seguir em frente. O problema é que tantos, tantos, e independentemente de o escritor ser ou não consagrado, não conseguem estimular-me a continuação. E isso para mim, que escrevo todos os dias, que sou um escritor de gaveta –como costumo dizer-, que tenho vários livros escritos, mas que nunca viram a luz do Sol, acaba por condicionar a minha acção futura. Em solilóquio, em monólogo com os meus botões, penso: “se há tantos milhares de bons escritores, incomparavelmente a anos-luz de ti, para que vais tu poluir o ambiente literário se já lá há tantos a enlameá-lo? Sossega, pobre homem! Continua a escrever todos os dias, porque precisas de o fazer, mas faz um favor à humanidade, não invadas o seu espaço com disparates. Por toda a literatura que rejeitas, já deu para veres que não basta ter nome e escrever bem. É preciso ter uma história invulgar…e tu não tens. É preciso ter um poço de imaginação crescente…e tu não tens. Tu és simplesmente um “escrevinhador”, desses tantos, milhares, que se cruzam connosco todos os dias na rua.
Com a leitura deste livro foi diferente. Entrei num alfarrabista da cidade e, numa grande placa, li: “Livros antigos e usados a 1 Euro”. Inevitavelmente, como abelha que é atraída pelo pólen de uma flor, eu sou arrastado descontroladamente para onde houver livros. Ali, naquela catedral de pó, odores a velho e onde cada objecto mudo, em diálogo surdo com o visitante, parece querer transmitir a sua história, como um apelo no silêncio: “leva-me contigo!”. Quando entro nestas casas de memória, olhando para os objectos, ilusoriamente, pareço vê-los de braços estendidos para mim e ouvi-los: “leva-me contigo!”. Nem sempre posso corresponder ao chamamento dos artigos em geral, mas nos livros, ai, companheiros queridos, um, pelo menos, vai comigo para casa.
Reparei que havia milhares de alfarrábios nesta casa de velharias. Com um interesse relativo, embora imbuído de alguma displicência, dei uma volta pelos títulos. Mexi ali, acolá, e mais ao lado. Foi então que no canto esquerdo da prateleira me chamou a atenção um livro velho, sem capa e meio desprezado. Não sei se teria sido o facto de eu ter estabelecido uma analogia com um cão rafeiro, isolado, escanzelado, “esmifrado”, de olhar terno, ou não. A verdade é que lhe peguei com o mesmo carinho com que se pega num passarinho que, meio depenado, ainda imberbe e a piar de aflição, caiu do ninho. O título era perfeitamente normal: “Enredos”. Ou melhor, se calhar era um capricho para estimular a minha curiosidade. Afinal “Enredos” pode ser muita coisa. Pode ser enredar-se em qualquer armadilha; pode ser um embaraço; uma situação complicada; uma confusão; um mexerico, ou até a acção de uma narrativa.
Se numa primeira fase, mentalmente, expurguei o título –eu já tinha confusões a mais na minha vida-, num segundo pensamento, mesmo sem o abrir, senti-me atraído pelo mistério. Contrariamente ao que costumo fazer nem sequer o abri, talvez pela explicação lógica: “ora, é só um euro!”. Paguei-o ao dono da loja, que por acaso, reparei, até era simpático, assim a quebrar o estereótipo de que quem trabalha com artigos antigos, de que é fechado, de face impenetrável, de óculos pequeninos nas narinas, tipo rato de biblioteca, antipático, sei lá, e saí.
Enquanto percorria as ruas da calçada e me cruzava com rostos indecifráveis de definir, senti um desejo ardente de ler o livro. Era cedo, uma tarde outonal de um Outubro de tempo ameno. Gosto desta época do ano. Nos meus delírios de poeta, tantas vezes me imagino uma folha amarelecida, seca, que se desprende do ramo da árvore. Lentamente, tocada pela leve brisa, vai esvoaçando para um lado, para o outro, numa viagem de segundos, na minha mente pode ser uma eternidade, e chega então ao chão. E aquela folha, que já foi viçosa, ardente e pujante, já contribuiu para a fotossíntese, agora, sem apelo nem agravo, é calcada por todos, pelo carro, pelo homem, pelo cão. E aqui faço a semelhança com os velhos solitários que vagueiam pelos jardins, pelas praças e vielas de uma cidade.
Sentei-me então na esplanada do café da grande praça. Já me conhecem, venho cá quase todos os dias. Pedi então uma água e, como combatente que se despoja do fato e da arma, relaxei, cruzei as pernas, abri o livro e, preparado para a triagem de vir a ser um dos eleitos ou mais um companheiro do asilo de livros que tenho em casa, comecei então a ler.
“Reparei nela assim que entrou na sala de espera. Foi o som que primeiro me chamou a atenção, o estalar ritmado e seguro de saltos altos na cerâmica que cobria o chão. Ainda hoje, quando penso nisso, não consigo perceber como a ouvi chegar.”
De repente, este primeiro parágrafo fez-me estacar. Eu conhecera a minha mulher exactamente neste contexto. Lembro-me como se fosse hoje. Estava eu no dentista, à espera de vez, no consultório do doutor Afonso Ramalheira.
Como estrela cintilante que cruza um luar de Agosto, fui teletransportado para umas décadas atrás.
Como estrela cintilante que cruza um luar de Agosto, fui teletransportado para umas décadas atrás.
Estou a vê-la a entrar na sala de espera. Pequenina, de meia altura, bem torneada, como uma garrafa de Coca-Cola. Se numa primeira fase foi o “toc…toc…toc”, ligeiro e decidido dos saltos dos sapatos que me prendeu o tino e me colocou vigilante, a seguir foi cada gesto, foi a saia que de tão curta teimava em subir, deixando à mostra umas coxas lindas, sedosas, que pareciam ter sido talhadas pelas mãos de Miguel Ângelo. Ali assisti a uma batalha entre a saia e a dona. Evidentemente que quem ganhou foi a saia. Para meu contentamento, esta, inevitavelmente, subiu até meio da perna, expondo ali a alegria dos meus olhos. Era uma mulher linda, de rosto arredondado, com olhos de avenca, nariz aquilino, e uns lábios carnudos que prometiam o céu. A emoldurar esta amostra do paraíso, uns longos cabelos negros refastelavam-se em liberdade, divididos entre umas costas lindas, parecidas com a Costa Brava, e um peito seguro e prometedor, a lembrar dois montes erectos nos Alpes Suíços.
Apesar de estarmos apenas os dois, como sempre fui tímido, lembro-me, as mil estratégias mentais que engendrei até conseguir meter-me com ela. A primeira frase que consegui dirigir-lhe ecoou na minha cabeça como o ribombar de uma rolha a saltar de uma garrafa de champanhe. Depois do eco ter desaparecido foi a sensação de que tinha dito uma idiotice qualquer. A verdade é que ela sorriu para mim a meio sorrir. Deveria ter compreendido a minha atrapalhação e inexperiência. Sempre admirei o sangue frio das mulheres perante uma qualquer situação. É como se, a qualquer momento, numa racionalidade imanente, soubessem sempre o que fazer perante um problema surgido do acaso. A mulher parte da solução simples para o enigma complicado.
O homem não procede assim. Em contrário, parte do global para a minudência. Se as mulheres governassem o mundo, provavelmente haveria menos guerras. Mas não é assim. O homem para viver precisa de dominar, ainda que, tantas vezes, essa dominação seja apenas uma aparência de coisa nenhuma.
Mas, se eu sei isto tudo, porque razão, hoje estamos separados? O que aconteceu para se quebrar toda aquela ligação de entrosamento e partilha? Se eu a conhecia de cor, por dentro, por fora, ao pormenor? Se eu sabia decifrar um qualquer olhar, um gesto por mais desconexo que fosse, um traço de preocupação, um misterioso desejo não formulado? O seu timbre de voz, mais ou menos carregado, eu sabia tudo. Eu lia a sua alma como um livro aberto O que aconteceu? Ou será que me enganei e nunca a conheci verdadeiramente?
4 comentários:
Lindo o seu texto. Gostei muito.
É incrível o modo como a personagem se auto-descreve. E como não podia deixar de ser, o modo como o próprio Luís descreve todos os cenários que rondam esta prosa, é sublime! De facto, não sei se não deveria escrever um livro, não interessa o tema Luís, interessa sim o sentimento com que escreve. Eu adoraria ler um livro seu, tenho esta paixão por boa escrita e não somente por boas histórias.
Aspiro um dia deixar fluir palavras por meus dedos com a mesma simplicidade com que o Luís o faz, e ainda assim albergar nelas o mesmo complexo literário que lhes consegue embutir.
Abraço.
Obrigada, Ana. Você é uma querida. Sinceramente, agradecido mesmo. É bom receber um comentário assim. Mas, como disse no texto, o nosso país está cheio de artistas, escritores, músicos, e estão quase todos a trabalhar numa caixa de um qualquer supermercado.
Mas o que importa aqui é realmente a sua apreciação e elogio.
Obrigada.
Ao ler as suas contribuições literárias para a «Fábrica..» só posso corroborar as opiniões de quem afirma que o Luís deveria pensar em algo mais.Pois existe gente deste lado(dos leitores,entenda-se)interessada em boas histórias.Mas não basta ser boa,a história tem de ser bem contada,bem escrita e penso(isto sou eu armado em critico literário)que os seus textos tem essas qualidades.Isto tudo para dizer que gostei do «Enredos».
Marco
Obrigado, Marco. Agradeço-lhe imenso a sua apreciação.
Um grande abraço.
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