sexta-feira, 10 de setembro de 2010

EDITORIAL: A SOMBRA DO PECADO


(IMAGEM DA WEB)





 Tenho dias que, sendo invadido por uma relativa angústia, pareço não ter alento para escrever sobre um tema específico. É como se, perante tanta desgraça que nos cerca, tanta inépcia, me apetecesse levitar como andorinha em voo em direcção ao Sol, e, lá de cima, olhando cá para baixo, em transcendência, conseguisse olhar para tudo o que se passa, mas de longe, e assim, elevando-me na relatividade desta massa disforme subdividida em partículas minúsculas, conseguisse entender mais facilmente certos actos humanos.
Parece que está tudo ao contrário. São histórias de filhos, de meninos ricos, que matam as mães –e não me refiro apenas a este caso agora de Coimbra. Nos últimos anos, no país, são imensos os parricídios e matricídios. Deveríamos pensar se a sociedade, na sua dinâmica natural, no desenvolvimento que se assiste, estará a caminhar para melhor ou pior. Não sou pessimista, e na eterna discussão se o homem nasce bom e é a sociedade que o torna mau –de Rosseau e de Hobbes-, procuro não me perder em derivas existenciais, mas também não serei excessivamente optimista. Por outras palavras, acredito que maioritariamente, em grande percentagem, o indivíduo nascerá com bom coração e talvez, minoritariamente, uma parte, será mesmo maldita. Com o empirismo, com a experiência adquirida e continuada da vida, acredito que os bons poderão tornar-se criminosos e os nascidos de coração negro poderão transformar-se em pessoas sociáveis. Tenho a certeza, também, que a sociedade não será, como tudo à nossa volta, maniqueísta, não se dividirá apenas entre benignos e malignos. Haverá um imenso campo sem luz entre eles. Sei também que a fronteira, o fio da navalha, que divide um sério e honrado pai de família e um homicida convicto, é uma linha ténue. E aqui é que deveremos ter consciência da nossa fragilidade enquanto seres emocionais, incompletos e falíveis. E se assim aceitarmos este facto, logo utilizaremos mais o perdão, a misericórdia, o desvalor perante a acção do outro, por mais selvagem que seja aos nossos olhos. Temos todos tendência em, perante um acto como este matricídio agora na cidade, exigir a morte, a queima no pelourinho do homicida. Isto é, procedemos como se, individualmente, fôssemos pessoas imunes à insanidade, sem mácula, e incapazes de cometer actos tresloucados similares.
Por outro lado, e quase parecendo o oposto do que escrevi atrás, devemos exigir, isso sim, um Direito mais racional e menos garantista. Menos abstracto –paradoxalmente, o que assistimos actualmente é a fulanização, com legislação feita por medida-, mais concentrado no individual e menos no geral –se tivermos em conta que todos somos permeáveis, a generalidade,  a preocupação de imparcialidade, é uma falácia na sua aplicação. Todos os dias verificamos que os pobres vão para a cadeia e os ricos cumprem a condenação nas glosas dos recursos e da prescrição.
 Assistimos a um desvirtuar perdido na iniquidade, tendo em conta que as leis na sua previsibilidade, por um lado, deverão ser sempre uma barreira, uma defesa, para, através da moldura penal, tentar conter o livre arbítrio que está dentro de cada um de nós, por outro, em contraprestação, serão sempre o contributo para a paz social.
Acontece que, se por um lado, o ressarcimento penal e o respeito societário são cada vez menores em contraposição ao valor vida, e o homem, na sua arbitrariedade, é cada vez mais um livre executor do seu imanente e incontrolável desejo, por outro, em nome de uma ortodoxia de reinserção, assistimos a um desvalorizar contínuo dos actos criminosos individuais através de uma penalização cada vez mais permissiva, assente somente na admoestação judicial ou cumprimento da sanção em liberdade.
É muito fácil de atentar que cada vez é maior o fosso entre um Direito perdido em prerrogativas de recurso, acompanhado de uma justiça lenta e de rodas dentadas, que não evoluiu desde a Revolução Francesa, e um homem contemporâneo, moderno, onde a sua vontade, ainda que imanente, se move numa externalidade extrínseca e na era da digitalização.
 Esquecemos que, nas últimas décadas, estamos a construir uma sociedade assente na liberdade/responsabilidade individual, ajuizada num igualitarismo exacerbado. Não lembramos que uma grande maioria nem sabe “usar” a liberdade –porque só se pode fazer bom uso de um qualquer privilégio quando conhecemos o oposto- nem é responsável na sua administração. Logo, naturalmente, estas duas disfunções estruturantes, numa colectividade em constante progresso, terão que causar problemas gravíssimos. Sobretudo, saliento, a segunda, na insegurança contratual que causa esta irresponsabilidade –aqui lembro a dificuldade actual em executar uma dívida.
Para ser um pouco mais claro, segundo parece a causa que desencadeou o efeito desta morte teria sido o jogo de poker através da Internet. Quantos milhares de famílias, de pessoas individuais, que, sendo irresponsáveis funcionais no controlo do vício de jogar, estarão insolventes em Portugal? Poderemos ir até à génese do problema: a facilidade com que os bancos distribuem cartões de crédito e financiamento a cidadãos que são incapazes de administrar a sua vida. O próprio Estado, numa relação discutível e primária, na entrega do RSI, Rendimento Social de Inserção, a beneficiários que não têm capacidade de administração, lava as mãos como Pilatos. Os cheques vêm endereçados ao titular. Sei de muitos casos que a verba recebida dura apenas um dia nos bolsos do favorecido.
 É que neste individualismo crescente que vivemos, embora aparentemente iguais, cromossomaticamente, somos todos diferentes. E provavelmente os irresponsáveis, no modo desculpabilizante como são encarados pelo sistema, serão muito mais iguais.
Talvez valesse a pena pensar nisto…

3 comentários:

Ana "Strobe" Mendes disse...

Caro Luís, vale a pena pensar no assunto concerteza. O problema que se coloca é quem deveria pensar nesse mesmo assunto. Sabe, pensar num assunto a que denominamos problema, é em si um problema, pois que tem responsabilidades sobre o tema não quer ter o problema de pensar no problema, pois talvez tivesse que lidar com outros problemas para tentar resolver o problema que arranjaria em pensar no problema!
Enfim, da mesma maneira que já deve ter percebido o emaranhado de problemas que acabei de enunciar, quem realmente deveria ter uma atitude sobre o assunto também já deve ter percebido, em suma, dá trabalho e chatices.
Embora um pouco frio este meu pensamento, gosto sempre de aplicar a teoria de Darwin no sistema judicial (entre outros grandes buracos da sociedade), é a lei da sobrevivência do mais forte, e com isto gosto sempre de utupizar este meu pensar, ou seja, quero crer que um dia não serão os maus da vida os mais fortes.
Julgo, nesta minha vida ainda muito inexperiente, que muito já se mudou ao longo dos anos na nossa sociedade, e embora provavelmente ainda se levem muitos mais a mudar o que falta, um dia se fará justiça com muito mais rigor devido à continua conscencialização "forçada".
Enquanto isso, pessoas como voçê vão dando voz activa a um pensar comum a todos nós mas que poucos têm não só a ousadia como a coragem de o verbalizar perante todos. Embora possa parecer pouco, e talvez o seja, mas é algo.

Já dizia aquele ditado velhinho, velhinho...grão a grão...:)
Um abraço Luis!

LUIS FERNANDES disse...

Obrigada, Ana, pelo seu importante comentário. Volte sempre que queira. É um prazer recebê-la nesta humilde casinha.
Abraço.

Anónimo disse...

É verdade Luís,na tentativa de proteger arguidos,na correcta presunção de inocência dos individuos sujeitos a julgamento,a legislação nacional caiu no exagero.Ás vezes torna-se mesmo ridicula a situação,na minha modesta opinião o direito nacional peca por ser demasiado garantistico,como disse quase ridiculo quando comparado com outras nações.Algumas até com resultados muito melhores que os nossos,porque não copiar?É que copiar o que está bem feito,não é vergonha nenhuma,não é?
Marco