terça-feira, 24 de junho de 2008

HISTÓRIAS DA MINHA ALDEIA (21): A TOUTINEGRA DO MOINHO



(O MOINHO DE ÁGUA DA MINHA ALDEIA, EM BARRÔ, HOJE JÁ COM PONTE EM CIMENTO)


 Sem precisar a data, por volta dos anos de 1930, o meu avô Francisco –que, pelo que o meu pai dizia, fora muito rico e perdeu tudo-, conjuntamente com o Joaquim Paulo, o Alexandre Duarte, o Joaquim Matos, a Angélica Fernandes, o José da Cruz, o Daniel Fernandes, a Rosa de Melo e a Teresa Fernandes, construíram um moinho de água, na minha aldeia de Barrô, junto à represa que, formando um pequeno lago no rio, para além de servir para regar os campos do Barreiro, era a piscina pública da miudagem.
Tantas vezes tomei banho naquelas águas cristalinas, envolvido pela sinfonia desafinada do coaxar das rãs, numa espécie de serenata ao deus-sol, tentando apanhar uns minúsculos peixes cabeça de tremoço, acompanhado pelo soprar do vento nos interstícios do canavial e um imenso chilrear da passarada!
Por volta do início dos anos de 1960, tendo eu então cerca de cinco anos, o meu pai, por óbito do meu avô, era herdeiro de 22 horas por ano de moagem no velho moinho. Quando calhava, ia à noite. Ele, carregando um pesado saco de milho, mesmo em pleno inverno, eu com uma lanterna de petróleo a balançar, como espada em riste a cortar o breu da escuridão, mirando uma tosca ponte de madeira, constituída por dois grossos rolos de eucalipto e forrados a travessas de aparas de pinho, que atravessava o rio de uma margem para a outra em direcção ao moinho.
Para quem não sabe, os moinhos estavam localizados junto dos cursos de água. Normalmente tinham um regueiro próprio que se iniciava, a montante, junto do rio e seguia em paralelo com este até incidir sobre uma grande roda de água, constituída em madeira por uns raios largos ou lemes. Esta roda, ao ser tocada pela força da água em jacto, gerava, através do movimento, uma força cinética que fazia mover uma mó em pedra granítica pesadíssima. Consoante a regulação mecânica pretendida, esta pedra esmagava completamente os cereais. Ainda me lembro do ruído desta pedra a rodar sobre outra. O ruído do atrito fazia lembrar os velhos comboios, pum, pum, pum, pum.
Era engraçado ver o meu pai, depois de apanhar a farinha para um saco, ficar completamente branco, chamuscado pela alvura, como se tivesse sido caiado por uma mão invisível. Depois de transportar a farinha para casa depositava-a numa arca de madeira. Era aí que a minha mãe a ia buscar e, num longo ritual, depois de amassada a massa, onde incluía umas rezas e um benzer, ia então acender o forno a lenha. Cozer a broa era sempre um dia de festa. Não porque tivesse alguma coisa de novo, penso, tão-somente que por ser um acontecimento que quebrava a modorra habitual, ou talvez o cheiro à pasta e ao odor do fumo do forno a lenha tão característico das aldeias. Ou, sei lá, talvez saber que nesse dia iria comer broa quente, tantas vezes com sardinhas lá dentro. Conseguem antever o sabor da broa quente, bem cozida e com todo aquele amor? Claro que conseguem! Basta imaginar.
Mesmo em criança nunca fui bom ornitólogo. Isto é, nunca percebi nada de pássaros. Não deixa de ser curioso, porque os pássaros sempre me encantaram. Em tempos de nidificação, dava tudo para encontrar um ninho. Quando achava um, era como me tivesse saído a lotaria. Ficava ali parado a olhar aqueles pequenos seres indefesos de bico aberto no ar. Depois, nos dias subsequentes, todos os dias ia visitar o “meu” ninho, acompanhando o crescimento dos pequenos passarinhos. Até que, inevitavelmente, um dia chegava lá e o encontraria vazio.
O único pássaro que conhecia era a toutinegra, hoje, infelizmente, quase em desaparecimento. Muitas vezes, durante o dia, ia sozinho para junto do moinho. Ou fosse pela farinha ou pela proximidade da água, quando lá ia estava sempre pousada no beiral uma toutinegra. Eu sentado na pedreira, ela em cima, vigiávamo-nos mutuamente. Eu apreciava o seu longo rabo, as suas elegantes pernas e a sua profusão de cores. Talvez invejasse a sua liberdade. Ela, provavelmente, olhando desconfiada, interrogava-se o porquê da minha curiosidade. Às vezes dava por mim a falar com ela e, tantas vezes, imaginava que ela falava comigo. Durante muitos anos a toutinegra do moinho foi a minha melhor amiga e confidente.

1 comentário:

Jorge Neves disse...

Bom retiro espiritual o velho moinho, escola de muitas sabedorias. Terra do meu amigo Batista(grande cozinheiro)e terra de bom vinho.