terça-feira, 24 de junho de 2008
UM SISTEMA SISTÉMICO
O FACTO:
A história começa, há cerca de um ano atrás, com um jovem de vinte e poucos anos, bem apessoado, a entrar numa loja de velharias, na Baixa, e a vender seis livros pretensamente usados, em estado semi-novo por 20euros. Em presença do bom-estado dos livros, sendo títulos de escaparate e interrogando o vendedor acerca do motivo da venda, o dono da loja recebe de resposta do alienante que tais livros já tinham sido lidos, além disso, em casa tinha dezenas, senão centenas, e que no dia seguinte viria vender mais.
Depois de acertado o negócio, e do vendedor ter saído e se ter identificado em conformidade com a lei, o dono da loja, ao manusear os livros, verificou que eram completamente novos e mais: não tinham sido lidos e conservavam os códigos de barras identificadores das livrarias Almedina e Bertrand . Como o comerciante sabia que uma grande percentagem das lojas da Baixa são, actualmente, grandes vítimas de furtos simples, até porque, igualmente, ele também faz parte do rol, seguidamente pegou nos livros e foi pessoalmente às duas livrarias alertar as gerências desta anomalia e que, em face dos presumíveis desvios, tomassem providências.
Os encarregados destas livrarias, perante a iminência do montante de livros ser elevado, ao tomarem conhecimento do facto puseram as mãos à cabeça, mais ou menos com a seguinte exclamação de receio e espanto: “como é possível!”.
Perante os factos, e conforme a lei obriga, o comerciante alertou a PSP. Veio esta a constatar que o entretanto constituído arguido tinha furtado centenas de livros em várias grandes e pequenas livrarias da Baixa, entre elas, as já citadas Almedina e Bertrand. Constatou também que os livros novos tinham sido alienados, quase na totalidade, numa casa comercial em Coimbra.
Como o arguido está envolvido noutros furtos na cidade, com receptação, está preso em prisão preventiva há cerca de sete meses.
O JULGAMENTO:
Depois de ser notificado para o julgamento às 9 horas de hoje, o comerciante, à hora marcada lá estava. A chamada para o pleito foi realizada às 10horas.
Para sua surpresa verificou que era o único ofendido no montante de 20euros. Por outras palavras, as livrarias da Baixa, lesadas em milhares de euros, nenhuma apresentou queixa. É razão para questionar se estas casas comerciais, hoje, perante furtos tão avultados, preferindo esconder a cara, amanhã, quando voltarem a serem roubados com ainda maior volume terão alguma legitimidade para apresentarem participação.
Tendo em conta que a violência urbana, nomeadamente furtos e roubos, assenta essencialmente na prevenção, e aí deveria ser obrigação moral de todos os prejudicados apresentarem queixa, para que as polícias, através da ocorrência, possam sinalizar e registar os índices de criminalidade, estes agentes comerciais, na sua omissão, concorrem para futura delinquência e colocam em risco e insegurança os meios envolventes em que estão inseridos. Por outro lado, esta falta de participação cívica, leva ao falsear de dados estatísticos sobre criminalidade referentes às cidades.
Ainda mais: gente que age assim, pela sua displicência, fazendo troça de quem cuida dos seus interesses e da sua segurança, como é o caso do agente da PSP, que, estando destacado em Lisboa, obrigatoriamente esteve presente no julgamento como testemunha. Tal-qualmente, como o comerciante, inconsolável perante o trabalho que teve, e para nada: “veja lá que perdi horas e horas a catalogar os livros, por referência e por livrarias, fui a cada uma para ser feito o reconhecimento, e estes fulanos estiveram-se a marimbar para o meu esforço”, desabafa, indignado o cívico.
O PRESIDIÁRIO:
Entre as 10 e as 11e 30 horas o réu, perante as imensas pessoas presentes no tribunal, esteve sempre algemado. Está certo? Muitos leitores irão pensar que sim. Eu penso que não. Aquele quadro triste dever-nos-ia envergonhar a todos. Deveria envergonhar um Estado que, em pleno século XXI, na era digital, no tempo da pulseira electrónica, discrimina e procede com os seus presos (só alguns), do mesmo modo, como se estivesse em pleno século XIX.
É um desrespeito por quem prevaricou. Eu sei que, provavelmente será difícil de entender esta apreciação subjectiva. Afinal é um ladrão, dirá você. É verdade sim senhor! É um delinquente, mas, cada coisa em seu lugar, isso não implica que não se deva ter respeito pela pessoa humana…que é o preso ali presente. Se admitimos aquele anacrónico tratamento inumano, porque não admitirmos a pena de morte ou a sevícia para todos os criminosos?
É controversa esta minha apreciação? Admito que possa ser. Porque em qualquer momento posso criticar o excesso de Direitos Liberdades e Garantias com que os nossos actuais códigos de Processo e Penal encaram a criminalidade e a delinquência social. Mas tenho a certeza do que escrevo, uma coisa é a forma (como é apresentado o arguido no tribunal) e outra coisa é a substância na sua apreciação (matéria de facto e de direito).
CONCLUSÃO:
Não fará sentido estabelecer no Código Penal plafonds para furtos sem violência? Onde não exista um acessório dano material ou corporal? Fará sentido que um crime de 20euros (como no caso em apreço), sendo crime público, ocupe o tribunal em julgamento, faça deslocar um agente da PSP e leve um comerciante a perder uma manhã para nada?
Fará sentido levar e manter o arguido no tribunal algemado por furtos simples?
Ah, é verdade, estava a esquecer-me de dizer, o comerciante perdoou o vendedor de livros. Em resumo aquele acontecimento, na visão de José Gil, foi um acontecimento não-inscrito, como não teve consequências, foi como não tivesse acontecido.
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