segunda-feira, 16 de junho de 2008

HISTÓRIAS DA MINHA ALDEIA (14): A CHOCA-CHOCA




Até há muito pouco, pelo menos até começar a escrever estas pequenas histórias, estava convencido que a minha aldeia, onde passei grande parte da minha infância, é um lugarejo que sempre foi tristonho, onde, hoje, no rosto dos seus habitantes, mesmo os mais idosos, perpassa uma sombria solidão. Parece que, nos ombros, carregam uma pesada herança feita de escolhos e engulhos. É raro –embora exista- olhar um rosto e sentir naqueles olhos uma espiritualidade e uma alegria de criança traquina.
Antes de começar a perscrutar esta vivência de outros tempos imaginava que, pelo que conhecia, os habitantes de Barrô viviam apenas do trabalho e para o trabalho. Que não existia uma cultura, undergrond, subterrânea que emergisse daquele povo solitário e aparentemente pouco solidário. Aos poucos, a conversar com as pessoas mais idosas e plenos de uma sã e viva recordação, venho a descobrir uma série de verdades que, aprioristicamente, tinha erradamente teorizado, assim como uma imanente cultura própria de há cinquenta anos atrás. É curioso o gosto e a desenvoltura com que as pessoas falam de um passado que, sendo deles, foi partilhado com tantos outros que a morte levou e cujos nomes, só eles, retém na memória. Quando penso que estou a maça-los com perguntas inconvenientes, reparo no ar afogueado das maçãs dos seus rostos, no brilho da menina dos seus olhos, como se nesta conversa, iniciassem uma viagem ao passado e este desabafar lhes fizesse bem. Como se sentissem que querem partilhar comigo algo íntimo e pessoal. Sinceramente, leitor, gostava de conseguir levar até si, através destas simples palavras, a mesma emoção que sinto quando converso com pessoas da minha aldeia e muito mais velhas do que eu.
Infelizmente, o tempo, na sua voragem dinâmica, em que, através da sobreposição cultural, dos usos e costumes, vai apagando a lembrança, e sepulta essa memória de antanho sem direito a epitáfio. Gostaria que soubessem que, embora tente ser o mais fiel possível daquilo que me é contado, não sou suficientemente investigador, indo ao mais fundo possível da verdade, como se escrevesse uma monografia. Não é isso que pretendo. São histórias simples de um povo humilde e trabalhador, retratados num lugar contextualizado do Portugal profundo, marcando uma época pobre e triste.
Com estas considerações abstractas, quase que perdi o assunto que me levou a escrever este texto. Mas calma, eu não me esqueço da sua curiosidade, leitor.
Há dias, em conversa com o meu amigo Agostinho Fernandes, a minha enciclopédia cultural, se posso falar assim, conversando acerca das minhas histórias, atira-me ele: “você não sabe, mas em Barrô, por volta dos anos de 1950, havia a moda do “choca-choca!”. Como, “choca-choca”, que é isso?! Interroguei, meio apalermado.
Explica o Agostinho: A “choca-choca” era uma dança popular, que não sabendo a origem, era, aos domingos à tarde, o entretenimento dos mais velhos. Juntavam-se vários homens e mulheres, no alpendre de um, e aleatoriamente ia passando no fim-de-semana seguinte para outro. Começavam com conversa fiada, bem regada com um tinto de estalar língua, transportado num pipo ou um garrafão, acompanhado com tremoços ou amendoins. Seguidamente, contavam-se umas anedotas e quando os efeitos etílicos do filho de Baco começavam a sentir-se, dançavam uns com os outros. E nem era necessário serem casados. Não havia nenhum instrumento musical. O compasso da música era marcado pelo som “choca-choca” saído da boca de um dos pares dançantes. Eram vários os dançarinos, Agostinho Fernandes relembra, entre eles, o pai, o saudoso “ti” João da Eira, o meu tio Ernesto e a minha tia Aida, o meu pai e a minha mãe, o Manuel Melo e a “ti” Saudade, -que foram os primeiros, na aldeia, a terem um estabelecimento de mercearia e taberna com petiscos- o Manuel Bento e Florinda Pires.
Para os mais novos, e também aos domingos, junto à casa do senhor Lino, actuava o acordeonista David de Horta, que vinha de bicicleta, da sua terra, de Horta até Barrô. Normalmente, sempre convidado pelo folguedo dinamizador do Manuel “fanangueiro”. No largo sobranceiro à casa daquele grande lavrador era colocada uma cadeira e aí estava o arraial pronto a começar. Quando chovia transferia-se para a eira do senhor Francisco Quintal. Contrariamente ao que eu pensava, a festa andava no ar e o bailarico estava sempre presente nos pés de cada um.

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