quinta-feira, 5 de junho de 2008

HISTÓRIAS DA MINHA ALDEIA: O CARRO DA MINHA FANTASIA (9)



Por volta do inicio dos anos de 1960, na minha aldeia, em Barrô, uma bonita terra que divide a meio a Mealhada e o Luso, num universo de, provavelmente, seis dezenas de habitantes, havia já, pelo menos, quatro automóveis, o que, a meu ver, constitui uma inovação para a época, numa terra onde apenas havia uma televisão e nem sequer existia um único tractor. A única máquina mecânica que se via por aquelas bandas, uma vez por ano, era uma enorme debulhadeira, por alturas da apanha do trigo e do centeio. Era um espectáculo ver aquela grande máquina trabalhar, movida a gasóleo. Todo o labor da agricultura era feita pela força braçal e com a ajuda de animais, normalmente o boi, que, para além do carro de duas rodas, puxava também a charrua e o arado. O burro era sobretudo empregue para pequenas cargas transportadas em carroça.
Se a memória não me falha, o primeiro automóvel pertenceu ao “Senhor José Maria”, um dos homens mais importantes da terra. Não porque tivesse muitas propriedades, mas porque estava estabelecido em Coimbra, com o Café Arcádia. Este café, hoje infelizmente desaparecido, foi talvez o estabelecimento mais emblemático da cidade dos estudantes, onde foi local de tertúlia de vários prosadores e poetas como Adolfo Rocha, mais conhecido como Miguel Torga.
O “Senhor José Maria”, como era conhecido na altura –e ainda hoje, porque goza de boa saúde e, curiosamente, apesar da desvalorização do status, do estatuto que os mais ricos tiveram perante o povo, este homem nunca perdeu o tratamento de “Senhor”. Embora septuagenário, parece ter menos vinte anos. É um gentleman, um homem que ao falar parece abraçar-nos, como se a sua voz viesse de cima, plena de encómios e embrulhada em perfumadas rosas silvestres. Não é um falar meloso e sussurrado como diplomata, mas uma voz bem timbrada e sonora. Um dia destes voltarei a falar da importância deste homem, e o quanto significou para mim, há 25 anos atrás. Embora ele nem sonhe, só o simples facto de ter pronunciado o nome dele, abriu-se-me uma janela que ditou o meu futuro.
O segundo automóvel pertenceu ao “Senhor” Lino, o mais abastado lavrador da aldeia. O terceiro seria propriedade do Agostinho Fernandes também a trabalhar em Coimbra. E o quarto automóvel foi então o carro da minha fantasia. Pertencia ao “Senhor” Matos, abastado lavrador, mas que, conjuntamente com essa complementaridade, da labuta da terra, exercia a profissão principal de “choufeur” das “camionetes” dos Oliveiras de Águeda. Ou seja, como se diz hoje, condutor dos autocarros da empresa génese da Rodoviária Nacional. Lembro-me do senhor Matos vestido com a farda obrigatória da empresa: sapato preto, calça e blusão, de um cinzento mescla, camisa branca e gravata, encimados por um boné de pala, com uma pequena placa gravada.
O senhor Matos era então proprietário de um Austin de 1932, de cor verde, de jantes raiadas, com dois grandes faróis em destacado e com as portas a abrir ao contrário, de detrás para a frente. Aquele maravilhoso objecto de locomoção estava numa garagem improvisada, junto à sua casa, num barracão, ao lado da capela. Como ao regressar da escola tinha de impreterivelmente passar ao seu lado, aos poucos fui ganhando um amor por aquele automóvel. E, quando após mal ter poisado a pasta da escola, pegava em duas cordas e num foicinho –pequena foice curva que servia para cortar fenos- para ir apanhar dois molhos de erva para os animais, por uns minutos, olhava embevecido para aquele carro da minha paixão. Às vezes era apanhado, em flagrante, pelo senhor Matos que estranhava aquele meu olhar para um objecto, que, para ele era “lana caprina”, coisa vulgar. Então perguntava-me, meio confundido, porque não ia eu brincar com os outros miúdos. Eu respondia que tinha de ir apanhar erva, senão apanhava pancada. E lá ia, em direcção ao “Barreiro”, um extenso vale, composto por hortas, leiras ou belgas. Era ali que a maioria dos desamparados da fortuna tinham o seu celeiro. Passava ao lado da fonte do Barreiro, pequena nascente de chafurdo, que, antes de haver água canalizada durante décadas, abasteceu toda a aldeia.
Quando eu tinha 15 anos, e ganhava mil escudos por mês que iam inteirinhos para o meu pai, o senhor Matos colocou o automóvel à venda. Num último arremesso, ainda ousei perguntar-lhe por quanto tencionava vendê-lo. “Quero quinze contos”, respondeu-me por entre o sorriso escarninho. Certamente dividido entre a admiração e o sarcástico.
Sei que o carro da minha fantasia foi então vendido para a Mealhada. Perdi o automóvel mas não perdi a memória e o sonho de um dia ter um igual.

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