(A Praça da República, por volta de 1960. Imagem retirada da Web)
Embora tenha consciência de que estou a
fugir um pouco ao tema, que me motivou e dá ênfase a esta série de crónicas, ou
seja, falar da minha aldeia de Barrô, ali próximo de Luso, a verdade é que, ao
penetrar nesta senda das recordações, sinto como se entrasse num labirinto
desconhecido. Aos poucos, em soluços de memória, sem que nada o faça prever,
como pequenos fantasmas, vão surgindo novos dados como se saltassem de repente
e gritassem: “aqui estou”!
Então, seguindo essa apologia, vou contar. Depois de ter concluído o exame da 4ª classe, em Julho de 1966, e ter escrito uma carta a um meu tio, que era cozinheiro num emblemático café-restaurante, em Coimbra, a pedir-lhe emprego, eis-me então chegado à cidade do Mondego.
Depois de ter sido surpreendido pelo bulício da Praça 8 de Maio e ficar extasiado com este novo mundo, acompanhado do meu familiar, tomámos o eléctrico. Pagámos cinco tostões pela viagem e desembocámos na Praça da República. Ali, à nossa frente, imponente como Taja Mahal, estava o grande restaurante que, para além de ter marcado uma época, gravou a fogo a memória de milhares de estudantes que, em trânsito, enquanto cursaram nas diversas faculdades, passaram por Coimbra: o Café Mandarim.
Este café-restaurante, nessa altura, apesar de estar aberto ainda há poucos anos –creio que abriu portas em 1960-, depressa se transformou numa espécie de catedral da tolerância, imposta tacitamente, em que conviviam tanto o trostskista-anarco-convicto como o comunista que lia o jornal República, do Raul Rego. Assim como, o fascista, orgulhoso defensor do regime vigente, o estudante revolucionário, que, “à surrelfa”, espalhava comunicados anónimos a anunciar uma reunião política. A vigiar todos estes, como olho do "grande irmão", vários agentes da Pide, cuja sede se situava então, um pouco mais acima, na Rua Antero de Quental, faziam ali o seu trabalho e o seu segundo quartel-general.
Não se sabia exactamente quem vigiava quem. O que se vislumbrava, isso sim, é que todos conviviam serenamente, embora sob alerta, presumivelmente da mesma forma, como se estivessem num bar, em Istambul, no tempo da Guerra Fria e em que, mais que certo, estariam agentes da MOSSAD, do MI-5, do KGB e ainda agentes secretos da STASSI.
O ambiente deste café era indescritível. Era um borbulhar constante de efervescência de pessoas a entrar e a sair. Era famoso o seu bitoque, o "Combinado número 5", e o “Bife à Mandarim”. Por lá passaram muitos dos actuais políticos, talvez a fina-flor da sociedade portuguesa da época, e que vinham estudar para a Universidade de Coimbra.
Curioso, também, o orgulho garboso assumido pelos empregados em trabalharem numa casa de tão alto gabarito e tão identitária da classe estudantil. Notava-se na sua forma de estar, na pose e no porte. Quem passou por lá lembra-se, certamente, no balcão de bar, o Hugo (já falecido), o Fernando, o Joaquim Pardal, com ar de “gentleman”, cabelo preto penteado para trás à Errol Flynn; dos empregados de mesa, o Abreu, o Manaia e o saudoso Talina (já falecido), este, que carinhosamente me tratava por “batatinha”. No balcão da pastelaria, mesmo à entrada, o Mendes, o Fernando, e o Tarrafa, este, que eu fora substituir.
Depois de um ano a trabalhar na cozinha, fui então para o balcão da pastelaria, para andar aos recados e levar os lanches –o galão e a torrada- a qualquer lugar onde fosse solicitado. Tanto poderia ser aos consultórios médicos, como a casas particulares, e até ao edifício da PIDE, na Rua Antero de Quental, cheguei a ir várias vezes.
A título de curiosidade, a mensalidade que fui auferir foram 250$00 -hoje 1,25 euro- de ordenado fixo, que ia inteirinho para o meu pai. Como estava em casa de uma tia não pagava alojamento.
Lembro-me de um acontecimento marcante e que me faz sorrir: a primeira vez que fui a uma casa-de-banho, com louças. Até aí, nunca entrara num destes ateliês do silêncio e onde o homem, largando a sua "cagança" acessória de imbecilidade, de joelhos, na forma e na substância, apresenta ser tão igual ao semelhante. Mostrando-me a casa e o pequeno quarto nas águas-furtadas onde iria dormir, passando à retrete, a minha tia, junto a mim, recomendou-me para eu fazer "xixi". Como eu nunca tinha visto nem um bidé nem uma sanita, olhei para os dois igualmente como um selvagem olhará para um telemóvel. Para não dar parte de fraco, a interrogar-me mentalmente, comecei a balançar entre se seria num ou noutro, até que, erradamente, evacuei no bidé.
Para além do pequeno ordenado tinha as gorjetas. Estas eram auferidas no transporte dos lanches e nos trocos remanescentes do tabaco –um Português Suave sem filtro custava 4$20, e normalmente o freguês dava 4$50- que iam direitinhos para a compra de roupa usada, que era lavada de noite para tornar a vestir no dia seguinte. Os sapatos, do mais barato que havia nesse tempo, custavam cerca de 80$00, da marca “Campeão Português” -em que a publicidade à marca, na televisão, era feita pelo Óscar Acúrcio a dar dois saltinhos-, e andavam nos pés até ficarem completamente com as solas rotas.
Tempos difíceis da qual os ossos filhos e netos nem lhes passa pela imaginação de que a maioria dos portugueses vivia assim. Para memória futura, fica este retalho de um tempo que, esperemos, não volte mais.
Então, seguindo essa apologia, vou contar. Depois de ter concluído o exame da 4ª classe, em Julho de 1966, e ter escrito uma carta a um meu tio, que era cozinheiro num emblemático café-restaurante, em Coimbra, a pedir-lhe emprego, eis-me então chegado à cidade do Mondego.
Depois de ter sido surpreendido pelo bulício da Praça 8 de Maio e ficar extasiado com este novo mundo, acompanhado do meu familiar, tomámos o eléctrico. Pagámos cinco tostões pela viagem e desembocámos na Praça da República. Ali, à nossa frente, imponente como Taja Mahal, estava o grande restaurante que, para além de ter marcado uma época, gravou a fogo a memória de milhares de estudantes que, em trânsito, enquanto cursaram nas diversas faculdades, passaram por Coimbra: o Café Mandarim.
Este café-restaurante, nessa altura, apesar de estar aberto ainda há poucos anos –creio que abriu portas em 1960-, depressa se transformou numa espécie de catedral da tolerância, imposta tacitamente, em que conviviam tanto o trostskista-anarco-convicto como o comunista que lia o jornal República, do Raul Rego. Assim como, o fascista, orgulhoso defensor do regime vigente, o estudante revolucionário, que, “à surrelfa”, espalhava comunicados anónimos a anunciar uma reunião política. A vigiar todos estes, como olho do "grande irmão", vários agentes da Pide, cuja sede se situava então, um pouco mais acima, na Rua Antero de Quental, faziam ali o seu trabalho e o seu segundo quartel-general.
Não se sabia exactamente quem vigiava quem. O que se vislumbrava, isso sim, é que todos conviviam serenamente, embora sob alerta, presumivelmente da mesma forma, como se estivessem num bar, em Istambul, no tempo da Guerra Fria e em que, mais que certo, estariam agentes da MOSSAD, do MI-5, do KGB e ainda agentes secretos da STASSI.
O ambiente deste café era indescritível. Era um borbulhar constante de efervescência de pessoas a entrar e a sair. Era famoso o seu bitoque, o "Combinado número 5", e o “Bife à Mandarim”. Por lá passaram muitos dos actuais políticos, talvez a fina-flor da sociedade portuguesa da época, e que vinham estudar para a Universidade de Coimbra.
Curioso, também, o orgulho garboso assumido pelos empregados em trabalharem numa casa de tão alto gabarito e tão identitária da classe estudantil. Notava-se na sua forma de estar, na pose e no porte. Quem passou por lá lembra-se, certamente, no balcão de bar, o Hugo (já falecido), o Fernando, o Joaquim Pardal, com ar de “gentleman”, cabelo preto penteado para trás à Errol Flynn; dos empregados de mesa, o Abreu, o Manaia e o saudoso Talina (já falecido), este, que carinhosamente me tratava por “batatinha”. No balcão da pastelaria, mesmo à entrada, o Mendes, o Fernando, e o Tarrafa, este, que eu fora substituir.
Depois de um ano a trabalhar na cozinha, fui então para o balcão da pastelaria, para andar aos recados e levar os lanches –o galão e a torrada- a qualquer lugar onde fosse solicitado. Tanto poderia ser aos consultórios médicos, como a casas particulares, e até ao edifício da PIDE, na Rua Antero de Quental, cheguei a ir várias vezes.
A título de curiosidade, a mensalidade que fui auferir foram 250$00 -hoje 1,25 euro- de ordenado fixo, que ia inteirinho para o meu pai. Como estava em casa de uma tia não pagava alojamento.
Lembro-me de um acontecimento marcante e que me faz sorrir: a primeira vez que fui a uma casa-de-banho, com louças. Até aí, nunca entrara num destes ateliês do silêncio e onde o homem, largando a sua "cagança" acessória de imbecilidade, de joelhos, na forma e na substância, apresenta ser tão igual ao semelhante. Mostrando-me a casa e o pequeno quarto nas águas-furtadas onde iria dormir, passando à retrete, a minha tia, junto a mim, recomendou-me para eu fazer "xixi". Como eu nunca tinha visto nem um bidé nem uma sanita, olhei para os dois igualmente como um selvagem olhará para um telemóvel. Para não dar parte de fraco, a interrogar-me mentalmente, comecei a balançar entre se seria num ou noutro, até que, erradamente, evacuei no bidé.
Para além do pequeno ordenado tinha as gorjetas. Estas eram auferidas no transporte dos lanches e nos trocos remanescentes do tabaco –um Português Suave sem filtro custava 4$20, e normalmente o freguês dava 4$50- que iam direitinhos para a compra de roupa usada, que era lavada de noite para tornar a vestir no dia seguinte. Os sapatos, do mais barato que havia nesse tempo, custavam cerca de 80$00, da marca “Campeão Português” -em que a publicidade à marca, na televisão, era feita pelo Óscar Acúrcio a dar dois saltinhos-, e andavam nos pés até ficarem completamente com as solas rotas.
Tempos difíceis da qual os ossos filhos e netos nem lhes passa pela imaginação de que a maioria dos portugueses vivia assim. Para memória futura, fica este retalho de um tempo que, esperemos, não volte mais.
5 comentários:
Caro Luis Fernandes, muito obrigado por ter tornado públicas estas suas memórias, que achei interessantissimas sobre o Mandarim. Inclusive irei usar um estrato do seu depoimento para um livro que estou a escrever sobre Praxe e tradições académicas em Coimbra. Um abraço
Excelente!
Por certo por lá nos cruzámos, entre 62 e 69.
Um grande café! Bons empregados, óptima clientela, um ambiente inesquecível a partir do final da tarde.
Um abraço,
Zé Veloso (dos Álamos)
Após cerca de meio século, hoje estive por uns momentos, como que por encanto, sentada no andar de cima do Mandarim, esperando alguém que não recordo, sentindo o cheirinho do café, mordiscando uma queijada, apreciando o vaivém dos jovens do meu tempo, de olhos brilhantes de ideais e projectos, escutando da mesa ao lado que o Araújo tinha fugido do país...
Dou os meus parabéns ao Luís Fernandes por esta descrição incrível.
Texto delicioso a recordar a minha breve passagem por Coimbra em 71/72, anos de luto académico com a associação fechada e praxe suspensa. O Mandarim foi meu “escritório” onde convivi com colegas e outros habitués como o Aníbal Salles, o Zé Canova do buggy e o Carlos Moura Pinheiro entre tantos. Ah e por la andava o famoso Tatonas que alguns recordarão como figura típica da Coimbra. Obrigado pelo texto que não ficou por perdido. Não me recordo do nome de outro café mais abaixo por onde passei também, já na avenida do lado oposto do Gil Vicente. Alguém se lembra?
Muito obrigado pelas suas palavras escritas.
O cafe que refere era (e é) o Pigalle.
Um pouco acima, já na Rua Tenente Valadim, era a Mercearia do Teles.
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