sábado, 28 de junho de 2008

HISTÓRIAS DA MINHA ALDEIA (23): AS FÁBULAS DO MEU TIO MANEL

(O meu tio Manel ao centro -foto de Edgar Midões)

(Capela de Várzeas -imagem do blogue Adelo)




Todos nós, dos tempos da nossa infância, recordamos sempre alguém especial que pelos feitos nos marcou profundamente. Poderia ter sido familiar chegado ou nem por isso. Como se viajássemos no tempo,  é nestes momentos de nostalgia que, entre palavra que puxa palavra ou uma fotografia que nos projecta em sentido ascendente, de repente lá vem a imagem desse ente tão peculiar e já desaparecido que, durante a nossa meninice, povoou e encantou a nossa vida. Como o recurso à imagem fotográfica era escasso, a sua silhueta surge-nos envolta na bruma da memória.
Na parte que me toca, lembro-me de vários tios que foram a alavanca de partida para um futuro de trabalho que se avizinhava. Por agora, vou apenas falar de dois, muito especiais para o meu desenvolvimento, e que jamais esquecerei.
Viviam em Várzeas, uma pequena aldeia mesmo junto ao Luso e pegadinha como paredes-meias. Os meus tios, embora irmãos, eram antagónicos na forma de viver a vida. E do seu feitio, tão contrário no estar e passar, só posso entender como sendo atribuído aos genes. Um, hereditariamente, pela graça e humor imanente, teria saído ao pai: o meu avô Crispim. Outro, mais que certo, geneticamente, teria vindo a ser bafejado com o lado bondoso e puro da mãe: a minha avó Madalena.
Este, o que veio a adquirir por parentesco a bonomia maternal, era o meu tio Albertino. Com o seu ar simples, transpirando sobriedade, seriedade e serenidade, era a humildade em pessoa. Ao longo da vida, estou em crer que nunca teria enganado ninguém. Mesmo se alguma vez o quisesse, os seus traços vincados de genuíno homem recto, justo e bom, tê-lo-iam traído e não teria conseguido "passar a perna" a ninguém. O suposto seria ele, dentro da sua encantadora ingenuidade, ser facilmente tropeado na cantilena de um qualquer burlão barato. Nasceu despido de riqueza e, na sua aceitação de vida enquanto fado de predestinação, pobre morreu.
Lembro-me muito bem deste meu tio. Por volta dos anos de 1960, era fogueiro (colocava as aparas de madeira para queimar numa grande caldeira de combustão) numa serração que existia, por esta altura, junto aos Refrigerantes Buçaco e ao lado da estação ferroviária de Luso. Muitas vezes fui vê-lo trabalhar naquele ambiente de calor infra-humano, onde se facilmente se respiravam temperaturas tórridas. Como era juntinho à gare dos comboios, volta e meia, sempre que passava uma composição, ouvíamos um estridente grito que quase estoirava os tímpanos de quem por ali andasse por perto. Era a senhora Rosalina, que vivia nos Moinhos, um povoado ali próximo e agregado ao Luso, e vendia umas torneadas bilhas de água chamadas “pichorras”, por vinte e cinco tostões. Vamos tentar recordar o pregão da então encantadora vendedeira: “Águuaa dee Luusssooo!"
O outro familiar, que certamente herdou o carácter divertido do pai, era o meu tio “Manel”. Este tão meu conhecido, de esgar folgazão e colado no rosto, um fabulador de histórias mirabolantes, foi de todos, para mim, o “must”, o meu modelo maior recalcado de uma memória, o paradigma da saudade de uma época que me faz bem. É difícil de descrever este sentimento, mas, para mim, recordar aquele tempo, em quadros alegres, é como quando necessitamos de acalmia espiritual e imaginamos um vale coberto de erva verde e um riacho de águas límpidas a correr e um radioso Sol a beijar a natureza. Assim retenho na memória este meu tio sentado no adro da capela, com a sua inseparável boina na cabeça, e o seu riso fácil entre a matreirice e a conveniência. O seu sorriso era a espiritualidade em toda a sua glória, era a sua alma materializada no rosto. Era tão normal tê-lo impregnado na sua cara que se tornava impossível dissociá-lo. Era como se ao nascer, em vez de chorar, trouxesse estampado na face aquela luminosidade fantástica. Era um mitómano em potência. Mentia, ou teatralizava, com uma facilidade de fazer inveja ao melhor actor do nosso Teatro Nacional D. Maria II. Quem não o conhecesse bem jamais diria que ele imaginava. Porque o “Manel” ao pronunciar as narrações estava a vivê-las. Não sei se era a fantasia que, como máscara natural, se lhe colava se era ele, através de um delírio fascinante em sonho de menino, que vivia autênticas megalomanias.
Sendo muito pobre, era como se desta maneira, gozando com a situação, tentasse trocar as voltas ao destino. Indrominava tão naturalmente que, em qualquer condição, era como se estivesse lá e fosse mesmo o personagem principal, apesar de saber que tudo aquilo que descrevia com mestria e uma convicção inexcedível e ao pormenor era inventado.
Quando chegava ao pé dele, normalmente sentado no chafariz do Largo da Capela, eu fazia sempre a pergunta sacramental: então ó tio como é que estamos de vacas?Ó rapaz!, são muitas, cada vez tenho mais. Ainda agora adquiri três mil. Se calhar tenho de comprar outra quinta. Não sabes quem tenha uma para vender?”. Interrogava, fixando-me de ar gracioso e dividido na comédia, perante o meu semblante compenetrado e como se estivesse a representar para agradar ao mestre.
Então e pessoal para trabalhar, você arranja? Já deve ter um exército, imagino! Prosseguia eu a estender a conversa e tentando a minha melhor performance.
´´Oh, oh! São milhares! São tantos que, calcula que quando estão todos sentados para comer, numa extensíssima mesa de quilómetros, se for batatas com bacalhau, anda um funcionário de patins em cima dela com um grande regador de 10 litros a temperar a comida”.
Onde quer que estejam os meus tios, Albertino e “Manel”, que descansem em paz e que pela sua memória sejam honrados por todos os varzienzes. Uma grande salva de palmas!





1 comentário:

André Melo disse...

Caro Luís:
Gostava de o convidar a passar no meu blog(www.orgulhoburriqeiro.blogspot.com) e de o ter como participante activo do mesmo!
Não consegui o seu e-mail para comunicarmos de forma mais directa, mas deixo-lhe o meu: andrealexandremelo@gmail.com