(VÁRZEAS ONTEM E HOJE -IMAGEM RETIRADA DO BLOGUE ADELO)
Nesta longa série de memórias, até agora, ainda não referi, mas, embora Barrô seja a aldeia onde passei a minha infância e me criei, e praticamente dela retenha todas as recordações, em boa verdade, não posso passar sem falar do lugar extraordinário onde vi a luz pela primeira vez: Várzeas.
Nasci nesta pequena aldeia próximo de Luso. Para quem não imagina, esta vila fica situada no sopé da serra do Buçaco. Como todos sabemos, ou pelo menos quem conhece, é uma terra encantada pela profusão de nascentes de água límpidas e cristalinas, medicinais e de mesa, que brotando das profundezas da terra, mostram a generosidade com que a natureza presenteou este lugar idílico e de sonho.
Várzeas, a povoação de que vou falar, e em que nasci, é atravessada pela linha da Beira Alta por uma longa ponte de ferro, que é um “ex libris”, símbolo representativo do lugar. Aquela enorme e bela estrutura arqueada, composta por peças de ferro, é uma alegoria ao génio humano, presumivelmente, da empresa do grande arquitecto Gustave Eiffel. É uma das poucas pontes construídas em Portugal e saídas da inspiração e do engenho criativo do grande construtor da Torre Eiffel, em Paris.
Este paradisíaco lugar, erguido num vale em “u” e que certamente há milénios, na era glaciar, teria sido o leito de um rio, é circundado, quer por um lado quer por outro, por altas cercanias. As suas terras, como enclave, protegidas dos ventos, férteis para “agriculturar”, foram durante séculos e sobretudo nas últimas décadas o sustento dos seus autóctones. Era do amanho da terra negra e fértil, acompanhadas por um pequeno rio em toda a sua extensão, que se alimentavam as cerca de, aproximadamente, seis dezenas de pessoas, no ano em que nasci, em 1956.
Nesse tempo, para quem a visitasse, era uma aldeola como tantas outras, que, facilmente, poderia representar o postal ilustrado do Portugal esconso, atrasado e rústico, não fora algumas diferenças que a tornavam diferente, quer na afabilidade das suas gentes, quer num facto que, hoje, considero curioso: a povoação, apesar de diminuta e de pouco poder económico, tinha na sua rua principal duas mercearias e tabernas. Felizmente ainda hoje em funcionamento, a primeira era a do senhor Vieira, bom homem, mas um pouco reservado e austero. O segundo estabelecimento, hoje encerrado, era mesmo ao cabo da rua e junto ao Largo da Capela. Uma vez que ficava abaixo do nível da rua, desciam-se vários degraus para receber a bênção de um bom copo de tinto em cima do mármore ligeiramente rosado do balcão de madeira. Era a “catedral” do “ti Manel” sapateiro. Trato-o assim, de forma carinhosa, porque, para além de assim ser reconhecido na época, era também o seu “métier”, a sua profissão. Embora um pouco adiposo, era um pequeno homem na estatura, mas enorme na simpatia. Tanto era ele mestre de sorriso fácil e humilde como a esposa, a “ti” Maria do Céu, que normalmente estava à frente da “venda”, no negócio de copos e mercearia.
“Ti Manel” tinha a oficina de sapateiro, conjuntamente com a habitação, a meio da artéria principal da aldeia. Era nesta arte ancestral, de manufactura de calçado, que ocupava os seus dias. Em complemento com os lucros do pequeno estabelecimento de mercearia, amanhavam umas leiras e, com os proveitos da terra cultivada, tudo junto, perfaziam os seus parcos rendimentos, permitindo-lhes viver modestamente.
Falei neste afável casal porque, curiosamente, consigo recordar, como se fosse hoje, o ar cândido, de pessoa boa e coração aberto, da “ti” Maria do Céu. Esta simpática senhora, de gestos e voz assertiva, quando me via dava-me sempre um rebuçado. Como tinha de passar, inevitavelmente, à frente da oficina do marido, do “ti Manel”, recordo deste o seu largo sorriso, sempre que me via. Com a sua voz palheta, mais para o agudo, parecendo envolver-me em mil abraços com as suas frases revigorantes e cheias de sentido anímico.
Quando eu fizera três anos, na procura de uma vida melhor, os meus pais abandonaram Várzeas e fomos viver mais para noroeste, a aldeia de Barrô, a cerca de mais ou menos meia-dúzia de quilómetros a separá-las. Então, como era tão acarinhado por toda a gente do pequeno lugar, era para mim um gosto indescritível de prazer sempre que lá voltava a visitar os meus avós e os meus tios. Teria eu cerca de quatro anos quando morreu a minha avó Madalena. Apesar da minha tenra idade, consigo, ainda hoje, visualizar a sua imagem e a sua cara ternurenta. De baixa estatura, anafada, de avental, sempre de avental, e o seu inesquecível rosto sofrido mas imensamente sereno.
Engraçado como em relação ao meu avô, ainda que tivesse morrido já eu teria mais ou menos oito anos, curiosamente, não consigo relembrar os traços do seu rosto. No entanto, pasme-se, é pelo olfacto que chego à sua memória. Já depois de viúvo, ele vivia num anexo, de rés-do-chão, quase em frente à oficina do “ti Manel”, e tinha por costume espalhar serradura no chão. Hoje, seja onde for, numa serração ou noutro qualquer lugar onde haja farelo de serrim, pelo cheiro, inevitavelmente, lembro-me do meu avô Crispim.
Em próximos apontamentos voltarei a esta encantadora terra maravilhosa e gémea siamesa da vila de Luso.
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