quarta-feira, 18 de junho de 2008

HISTÓRIA DA MINHA ALDEIA (17): OS MEUS SAPATOS DE LUVA


(Não é o senhor "Xico", mas pode perfeitamente representar a sua memória)

Ainda não contei, mas os meus primeiros sapatos, as primeiras calças de vinco “terylene”, a primeira camisa de colarinhos “tv”, assim chamada na época de 1960, e um pequeno pulôver, tive-os apenas, pela primeira vez, quando, com 10 anos, fui fazer o exame da quarta classe. Esta mesma roupa serviu depois para a comunhão, celebrada logo a seguir, assim como para entrar, um mês depois, então ainda com 10 anos, no mercado de trabalho.
Lembro-me de, uma semana antes do exame, a minha mãe ter ido ao Luso, à loja do senhor Adelino Carvalho, comprar estes “luxos”. Acreditem, não exagero ao classificá-los assim. Para quem nunca tivera uma “farda” daquele gabarito, quem sempre usara calças remendadas e umas “chancas” no inverno e umas sandálias de plástico no verão, aquilo era mesmo um luxo indescritível. Nos dias antecedentes do exame, mal os meus pais viravam costas, aí ia eu a correr vestir aquelas roupas à pressa, a deleitar-me e, certamente, naqueles momentos fugazes de felicidade extrema, a imaginar-me, por entre todos os mais pobres da aldeia, o menino mais rico e mais sortudo. A sorte que eu tinha! Parecia mesmo um senhor, todo aperaltado, daqueles do pequeno ecrã, que, até aí, só vira na televisão, na “venda” do senhor António Simões.
Veio o dia do exame, que fiz durante a manhã. Mal cheguei a Barrô, almocei à pressa e fui colocar-me, sentado, de perna traçada, no patim do Largo da Capela, para que toda a gente da aldeia visse como eu estava vestido. Estive lá sentado até ao anoitecer.
Uma semana depois, creio, celebrei a comunhão e logo a seguir, em 1966, vim trabalhar para Coimbra. Enquanto esta roupa durou chamei-lhe um figo. Depois, como não havia dinheiro, passei a usar roupa usada. Roupa nova, de marca, contentava-me em vê-la nos outros. Os sapatos que calçava até ficarem rotos eram dos mais baratos que havia, custavam cerca de 80$00.
Lembro-me que o meu maior sonho, na altura, era ter umas calças de ganga LOIS, uma camiseta LACOSTE, e uns sapatos de luva. Porém, havia um senão. Cada uma destas peças custava à volta de 250$00. Como eu ganhava exactamente essa quantia, que ia inteirinha para os meus pais, facilmente se notará que eu estava tão longe de ter um destes ícones da moda, como quase ir à lua. Então, um dia, eu mandara pôr meias solas nuns dos tais sapatos baratuchos no senhor “Xico”, sapateiro, à entrada da Rua Tenente Valadim. Acontece que, sem eu compreender o porquê, o senhor Francisco nunca mais mos entregava. Passados cerca de dois meses, fui então à sua oficina perguntar pelos sapatos. O sapateiro, meio atarantado, não se lembrava do meu calçado, então vira-se para mim e diz:” engraçado, não me lembro nada de mos teres colocado aqui para conserto. Vê aqui se os reconheces”. Em frente a mim estava uma longa prateleira com todos, todos, os sapatos já prontos. Conseguem adivinhar quais os sapatos que escolhi? Pois claro…uns de luva, é óbvio! Mas havia um pequeno senão, ao calçá-los, estavam apertadíssimos, mas não foi por isso que não andei orgulhosamente com eles.Durante meses, enquanto duraram, mesmo magoando-me os pés, eles foram o encanto dos meus dias e o meu sonho tornado realidade.
Quanto às tão ambicionadas calças de ganga Lois e camiseta Lacoste, só viria a tê-las pela primeira vez, creio, já com 16 anos, quando fui trabalhar para uma casa comercial de pronto-a-vestir.
Ainda hoje, curiosamente, as calças de ganga são as minhas eleitas e uso sempre sapatos de luva. Comprar uma Lacoste, para mim, é algo de místico, qualquer coisa que me transcende, é como fazer uma viagem a um recanto paradisíaco que é só meu. Estou preso ao passado? Dirá você, leitor. Se calhar, é o mais provável. Afinal, não será verdade que somos um resultado, nunca acabado, de um continuum que começou no berço?

1 comentário:

José disse...

Achei semelhante à minha experiência, na parte que toca às calças de Terylene, camisa TV, calças Lois (porque eram feitas em Espanha, dizia-se) e camisolas (não havia cá t-shirt nem Sweatshirt) Lacoste.
A diferença é que a camisa e as calças, com gravata, eram usadas ao domingo para ir à missa.
Ainda hoje, quando tenho de me aperaltar, digo que vou vestir a roupa de ir à missa.
Particularidade, com a camisa TV forneciam uma esponja para a minha mãe poder esfregar o colarinho antes de a lavar.