quinta-feira, 18 de dezembro de 2014

O QUE É PARA SI O NATAL?



O senhor Alonso Sayal é um recatado prosador e poeta anónimo. Acompanhado da amargura que, como trituradora, consome a sua alma, não gosta de se expor e só com grande persistência minha me vai mostrando alguma coisa. Se vivêssemos num país de reconhecimento, creio, este homem teria montes de livros publicados entre poesia e prosa. Como estamos numa terra onde o talento tem um valor muito relativo, quase despiciente, continua a escrever para o fundo da gaveta. Como é de prever, um dia, no calor de uma fogueira ou num amontoado de lixeira, o espírito destes escritos vários de uma vida, em fluidos, se libertará das amarras que os mantém presos à recordação. No ano passado, por esta altura, deixou-me este belo poema: "Recordação".
Desde há uns anos que é um visitante, semanal e amiúde, dos meus e dos seus dias. Diz-me muitas vezes que não tem com quem conversar e, dentro dos seus 86 anos, conta-me retalhos da sua existência, em desabafo. Sempre que tenho tempo, porque também gosto de cavaquear mas sobretudo ouvir as muitas histórias algumas de desencanto e outras de alegria, durante mais de uma hora, lá desenrolamos o novelo das nossas fragilidades de humanoides a termo existencial.
Ontem, em conversa sobre esta quadra natalícia que atravessamos, de supetão, atirei ao meu amigo Sayal: para si, o que é o Natal? Entre frases curtas, médias e mais compridas foi-me contando a sua interpretação e não pensei mais no assunto. Hoje, para minha surpresa, em 4 páginas manuscritas, veio trazer-me a sua versão escrita:

“Talvez não haja frio 
se um Natal nos bater à porta.
Se o halo que nos rodeia é a vida plena no seu dom é apenas porque o seu mistério é a razão.
Se Deus está vivo ou morreu pouco nos importa. 
O importante é reinventá-lo. 
Talvez os tempos possam dar as mãos; de mãos dadas transmitiremos o calor de estarmos vivos e manter acesa a chama que iluda os tempos friorentos. Seria Natal se toda a palpitação da vida nos aquecesse a amizade que esquecemos como fenómeno. 
Seria Natal se todos juntos não fizéssemos do vai vem uma cópia fria da natureza. 
Façamos o Natal que apregoamos. 
Façamos deste tempo, dos tempos deste espaço, o caminho de um abraço. 
Essa é a força que irrompe, como iluminadora, que define a presença para criarmos um Natal. O trágico é esquecermos sempre que o Natal só é quente durante um dia. Os outros são a saudade da infância, porque a vida é plena do seu dom, o seu mistério é a razão do Natal.
Ora que fazemos? Continuamos infantilmente a fingir de Natal pleno de realidade e sonhos, que afastem do irmão a fome, de ser, de estar, de dar outra vez todas as vezes as mãos? Aqui seria o amor não apregoado, mas vida, vivida e dada na coragem de fazer melhor Natal.
Irmãos de uma comunidade plena principiada ao nascer, lega-nos após Sol e Lua, como herança a Deus que morreu e que ressuscitamos aos poucos, como verdade? Como arrependimento? 
Como esperança? Ou como necessidade de uma luz que é ilusão? E se irmãos de uma só comunidade reconstruimos em todo o tempo o Natal sem berço de palha, pleno sim, do ar que comummente respiramos. 
Não nos admiremos da nossa condição de vida, ela é a nossa obra. O milagre está na luz da certeza, da temporária vivência do que somos até… aí inventámos o Natal, sem Natal. 
Esta é a terrível realidade de sermos o que somos; apenas “irmãos natalícios”. 
Carne e sangue são fingimentos que esquecemos na desaparição. Só o medo, que é terrivelmente verdadeiro, é a força do esquecimento.
Após reinventarmos o Deus em Natal, em abraço temporário, em alegria de nos vermos, em desejos de palavras sem passado, ou ânsia de sempre, de um porvir.
"Pessoa disse: “não haver Deus é um Deus também”. Restamos a inventar Deus. 
Antes disto já haveria no Universo um Deus com complemento de Natal, o Menino Jesus, sem baptismo ou certidão de idade.
Está a escurecer. Não vou mais além sem candeia. Se Natal houvesse, talvez a noite fosse um Sol para sempre.

P.S. –Como resposta incompleta à sua pergunta.
Para o amigo António Luís Fernandes Quintans estas mal-alinhavadas letras, com o desejo que faça o seu Natal.
Alonso Sayal
“Zé da Brenha”



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