quarta-feira, 24 de dezembro de 2014

MORRER NA VÉSPERA DO NATAL



O homem de aspecto cadavérico está deitado na cama do hospital. De face encovada, tez amarelada e barriga saliente que se eleva no plano horizontal do lençol, está sozinho no quarto branco. Hirto, de pálpebras cerradas, não fosse o arfar contínuo, espaçado em tiques de sofrimento, e parecia estar sem vida. No pequeno compartimento sente-se o silêncio e recolhimento que se respira nas catedrais. Aquele ambiente granítico, impessoal, que entra dentro de nós e nos faz sentir partículas de um todo que tem uma história e está a prazo no espaço de tempo que lhe foi dado como mistério de dádiva divina.
É terça-feira à noite e falta um dia para o Natal. O homem que descrevo, de cinquenta anos de idade, está no chamado corredor da morte. Resultado de uma curta existência de excessos, entre tudo o que poderia encurtar a sua actividade, ele está ali, quem sabe, a negociar mais tempo e a tentar agarrar-se à vida que desperdiçou de uma forma inglória, sem fama e sem prestígio para quem viveu com a sua idiossincrasia, na sua egoísta passagem terrena.
A família foi avisada de que a qualquer momento poderia ocorrer o último sopro. É uma questão de horas. Muito contra a vontade de alguns familiares, a mãe do enfermo, mesmo arrastando-se numa cadeira de rodas foi despedir-se do seu amado, carne do seu ventre, espírito de si mesma. Para ela, aquele corpo inerte e sem mexida continuava a ser o seu menino que viu nascer, espernear, crescer, e agora morrer. Chegou junto do moribundo e, baixinho, como se temesse que a sua voz pudesse magoar o doente, proclamou: “meu filho! Meu amado filho!” –e as lágrimas, como torrente em descongelo de nevada, arrastaram todos os sulcos daquela pele enrugada pelo tempo e caíram em catadupa. E eis o grande enigma da força que anima os humanos: o homem abriu as pálpebras. Sem pestanejar e de olhar mortiço, a respiração tornou-se mais apressada e entrecortada. Sem o conseguir, mais que certo em profundo desespero de sentidos, ele buscava todas as forças do fundo da sua alma para apanhar uma só palavra e poder presentear o seu amor existencial. Mas nenhum grito saiu. Só a abertura dos olhos permanecerão para sempre na memória de quem assistiu. Ali, à frente da família, estava um filho a comunicar mentalmente com a sua mãe e, quem sabe, a querer transmitir: “perdoa-me, mãe, o quanto te fiz sofrer! Desculpa, querida, o quanto fui imerecido da vida que me deste. Obrigada, mãe, por tudo quanto fizeste por mim! Parto do nosso meio com a certeza de que fui muito amado! Bem-haja mãe!”
Passada meia dúzia de horas o Paulo Fernando Carvalho Pereira faleceu. Morreu hoje, véspera de Natal, durante a manhã nos HUC, Hospitais da Universidade de Coimbra. Não deixa de ser irónico, atentemos. Uma pessoa que desprezou a sua própria vida, desvalorizando-a de uma maneira atroz, morrer a poucas horas do símbolo da luz existencial da humanidade, o nascimento do Menino Jesus.
Até sempre, meu amigo Paulo. Por tudo, pelas alegrias e mesmo até pelas tristezas que nos deste –fruto, quem sabe, de um caminho que tinhas reservado e traçado em destino-, foi um gosto ter-te entre nós. Descansa no sono eterno dos justos. Já pagaste tudo. Estás perdoado por todos! Paz à tua alma!

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