quarta-feira, 29 de maio de 2013

UMA ENTREVISTA, POR ACASO...



 Todos os dias, logo de manhã, me cruzo com ele na rua estreita, acompanhado pela esposa, Cila, sempre agarradinhos, como eterno apaixonados, a ponto de me fazer inveja. O Francisco Veiga, de 68 anos de idade, e mais de meio-século de actividade comercial, emérito e reputado comerciante da Baixa de Coimbra, faz parte de uma estirpe em completo desaparecimento. Começou como marçano no comércio, de alpercatas rotas, estômago a dar horas e uma vontade imensurável de alcançar um estatuto de dignidade. Atirou-se à vida sem freio, conheceu o êxito e a glória de ter sido considerado um dos maiores profissionais da moda na cidade. A roda desandou e hoje, como a maioria dos lojistas do ramo de pronto-a-vestir, está novamente na mó de baixo. Escrevo assim mesmo, porque o “Chico”, como é gentilmente tratado por aqui, não tem medo das palavras. No entanto, e é por isso que o admiro e considero, continua uma pessoa humilde, não perdeu o porte, o sorriso, e, acima de tudo, a disponibilidade de se dar para os outros, sabendo que a simplicidade deixa marca nas pedras da calçada. Deu-me para ouvir o Veiga. O que terá ele para dizer?

Apanhaste-me de surpresa, pá! Conheces a minha história de trás para frente. Sabes o que penso de tudo o que nos está acontecer. Queres que eu te repita o que já disse tantas vezes? Está bem! Estou cansado, meu amigo! Cansado de trabalhar para uma causa perdida. Olho para esta Baixa na actualidade e, em analogia, vejo um campo cheio de silvas misturado com ervas daninhas, onde a vida humana praticamente desapareceu. Faz-me sangrar o coração, pá! Eu comecei no desaparecido Carlos Camiseiro, na Praça do Comércio, tu sabes. Esta zona era um pulsar permanente de actividade. Às vezes dou por mim a interrogar como foi possível, indo atrás de lentilhas, destruir tudo isto. Começou logo com a criação de novas centralidades, com muita construção na periferia, que foram recebendo, em transferência massiva, os moradores mais novos e deixando cá os mais velhos. Tal como em outras zonas históricas do país, a edificação antiga, aqui, salvo excepções, não tem qualidade. Falta conforto. A seguir foram licenciando as grandes superfícies e, então sim, desta vez, foram sendo deslocalizados os consumidores mais endinheirados. Hoje esta zona velha tenta sobreviver à custa de um cliente idoso e pouco poder económico. Andamos todos, eu e outros, há mais de 15 anos a alertar as autoridades, nomeadamente a Câmara Municipal, para a hecatombe que está acontecer e nada se fez para o evitar. Pelo contrário, dá a impressão que a intenção foi sempre correr daqui os pequenos operadores, entre comércio e serviços, que eram a alma e davam movimento a esta área habitacional e comercial. Há actividades que já desapareceram e não voltam mais pelas dificuldades que lhes foram impostas. Optaram por ir para a periferia. Com os serviços administrativos aconteceu o mesmo. Basta lembrar o caso da esquadra da PSP. Ninguém se lembra que estes prestadores públicos eram o catalisador de um todo e ao abandonarem o centro da cidade a Baixa ficou mais isolada e deserta. A autarquia, da mesma forma que faz no Mercado Municipal, deveria cobrar um valor muito baixinho na primeira hora de estacionamento público –apenas para fazer o controle, aí 10 ou 20 cêntimos.
Se quiserem fazer alguma coisa, e antes que morra de vez, é preciso começar pela recuperação do edificado. É urgente criar condições para virem pessoas para aqui residir, sobretudo casais novos. Tenho nostalgia de ver crianças a brincar nos pequenos largos. Já se vêem alguns estudantes mas não chega. Os universitários não fazem despesa. Dormem cá mas vão comer às cantinas. O fundamental é apostar nas famílias. É preciso arriscar em novos paradigmas. Por exemplo o trânsito no canal. Neste momento, tendo em conta a acelerada desertificação e degradação social, é essencial repor a circulação de transportes colectivos nestas vias largas. Desde o princípio, por volta de 1990 e quando tornaram estas ruas pedonais, que sempre fui contra. Por parte dos comerciantes, ninguém me deu razão, mas agora torcem a orelha. Outro grande problema são as rendas habitacionais e comerciais. Deveriam ser condicionadas e de modo a não haver nem locados nem estabelecimentos encerrados. Alguns estão nesta situação há vários anos. Lojas fechadas, como tanto se vê, são uma má imagem, geram insegurança, para quem nos visita. O aspecto de abandono é desolador, é um desgosto, pá!. Deveria ser criada legislação para obrigar os proprietários a só poderem ter uma casa encerrada ou uma loja durante seis meses. Seria uma forma simples de desencadear o abaixamento das rendas.
Tenho muita saudade da Baixa de outros tempos. Muita saudade do movimento, do ambiente que se vivia aqui. Desapareceram os pregões, o barulho de fundo tão pitoresco desta zona. Agora só o silêncio impõe o seu manto dominador; é tudo muito triste, soturno, sem cor. Vejo o futuro com muita apreensão. As pessoas andam desanimadas, sem alento, sem esperança no dia de amanhã. Se fosse mais novo emigrava. Não me dá prazer viver no nosso país. Graças a Deus, contrariamente a tantos casais que conheço por cá e que estão com divórcios, esta terrível crise não está afectar a minha família. Tenho uma mulher maravilhosa, sabes? Continuamos apaixonados. É o que me vale quando, de manhã, acordo e penso que tenho de vir trabalhar para a loja. Tento, por todos os meios, retardar a minha volta diária. O Comércio, que outrora me deu tantas alegrias, neste momento é a minha cruz. Sinto-me preso, pregado a esta situação. É um martírio que estou a passar. Não pelos clientes, esclareço. Quero dizer pela sua raridade. São poucos e não têm dinheiro para gastar. Somos acusados de não nos modernizarmos. Mas como? Só afirma isto quem nada sabe. A nova lei do arrendamento (Novo Regime de Arrendamento Urbano), entre outros erros crassos, foi a desgraça do comércio. Mesmo assim quero acreditar que esta actividade tradicional tem futuro. Nem que seja pelos meus filhos e, acima de tudo, os meus netos, que tanto gostava de ajudar e não posso. Tenho medo deste futuro que é já hoje.”

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