Na velha loja de velharias,
implantada na cidade há quase duas décadas, perdida nos encontros da história
e nos cruzamentos da vida, os objectos expostos no estabelecimento tremem de
dor perante os continuados apelos ouvidos e saídos da boca de gente que merecia
mais consideração e respeito: “por favor, senhor, compre-me esta boneca. É da
minha neta! Mas o que hei-de fazer? Ela está desempregada! A minha reforma é de
duzentos e poucos euros. Nem dinheiro tenho para a farmácia –eles não me fiam.
Estou a passar fome, senhor. Acredite!”
No canto, um velho Gramofhone, invenção de 1887 do alemão
Emil Berliner, que nos anos loucos de 1920 alegrou e engrandeceu uma qualquer grande
casa senhorial, em face da verborreia de lengalenga da senhora idosa, parece contrair-se
em sofrimento, como se, em especulação, comparasse o seu tempo de abastança com
este início de século prenhe de quadros de miséria humana. Ao lado, um velho
relógio de torre, em lembrança de Trindades ouvidas num campo lavrado à força
de um homem suado e uma parelha de bois, toca a reboque para reunir outros
congéneres. Mas o seu chamamento não surtiu efeito. A maioria dos contadores deste
tempo que não deixa recordação, tal como os humanos, estão adormecidos, sem
corda, sem força anímica, para poder entabular reacção.
Um passo à frente, e no mesmo
ambiente secular, um busto em terracota, certamente um reivindicativo
republicano do final da Monarquia, austero, de bigodes retorcidos e olhos
pregados na cena, parece pensar se teria valido a pena a mudança de sistema e
augura condenar esta política hodierna que manda para o charco a tão apregoada dignidade
da pessoa humana. Sem falar e apenas pela imagem do semblante duro, sugere que
o que está acontecer é uma tragédia social de consequências terríveis e incomensuráveis
e não pode continuar. É demasiado atroz para se poder passar ao lado. Como a dar-lhe
razão, o cuco de um relógio com o mesmo nome, um Junghans fabricado na Alemanha, solta seis ais, gemidos e chorados, como se estivesse solidário com a causa republicana nacional. Na mesma parede,
ao lado, uma máquina portuguesa, da velhinha Boa Reguladora, praticamente engolida na destrutiva onda da
globalização, quem sabe por desprezo, nem se dignou responder ao símbolo da
indústria alemã.
Em frente, numa mesa, tosca e carcomida
pela memória e talvez fruto de um desaparecido marceneiro que pela noite dentro
ganhava a vida em suprimento familiar, umas dezenas de pratos da Fábrica de Sacavém
jazem inertes como esqueletos de engenho e arte que, dando trabalho a
milhares de pessoas até aos idos anos de 1980, foi engolida nos fumos
revolucionários da Abrilada. Numa
prateleira, uns quantos rádios a válvulas, embora mudos mas prontos a debitarem
música e notícias a qualquer momento, do seu olho-mágico avaliam todo o cenário envolvente com apatia e
misericórdia. Em frente, uns alfarrábios empoeirados, que conservam na lapela
as impressões digitais de várias gerações, sugerindo em analogia um lago de
águas paradas e sem vida, parecem questionar: o que é isto? Para onde caminhamos?
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