LEIA AQUI O DESPERTAR DESTA SEMANA
Para além do texto "UMA ENTREVISTA, POR ACASO", deixo também as crónicas "DE RASGAR O CORAÇÃO"; "UM JANTAR PELOS COMERCIANTES"; "RANCHO DE COIMBRA A TODO O VAPOR"; e "REFLEXÂO: COINCIDÊNCIA"
UMA ENTREVISTA, POR ACASO
Quando o vemos a percorrer as
pedras da calçada nas ruas estreitas em passo ligeiro, se não o conhecermos, pelo
porte atlético e espírito de gentleman,
pela garbosidade, alma cheia e autoestima no máximo, imaginamos estar na presença
de um juiz jubilado, ou, no mínimo, perante um Charlton Heston incarnado, saído
dos anos de ouro do cinema de Hollywood. De pele bem cuidada, e sempre vestido
com gosto, de fato e gravata, barba bem aparada, cabelo prateado e bem
penteado, ninguém diz que, por um lado, o José Luís Montenegro é alfaiate de
profissão e, por outro, que tem 74 anos de idade. Em silogismo, tendo em conta
o seu labor profissional, poderemos ser levados a especular que, no extenso rol
de clientela, terá Deus como freguês e Este, pela compensação, subtrai-lhe umas
primaveras e trata-lhe do aspeto. Por acaso, sempre por acaso, cruzei-me com o
Montenegro, ali na Rua do Almoxarife, junto à sua alfaiataria. Como todos os
profissionais do corte, sabe ser
incisivo e certeiro. Vamos ouvir o que tem para nos dizer:
“Estive 32 anos com oficina em Santa Clara, na Avenida João das Regras.
Há 14 anos, como guerreiro que retorna sempre à sua origem, deu-me uma saudade
danada e vim para Baixa. Sou salatina, nasci na Rua do Cabido, na Alta, e por
aqui, pela zona histórica, cresci e me fiz homem. Atualmente, tenho o meu atelier
na artéria mais emblemática desta zona velha: a Rua do Almoxarife. Toda gente
fala de crise. Graças a Deus não sei o que é a crise! Nem tenho tempo para me
coçar. Desde há 60 anos que laboro todos os dias, incluindo sábados e domingos,
sempre que necessário. A minha freguesia é constituída por professores, juízes,
médicos e empresários bem-sucedidos. Embora sempre trabalhasse com todas as
extirpes sociais, mas a classe média morreu. Apesar de ainda fazer alguma obra
para este grupo social, e mesmo até para agrupamentos de folclore. Tenho sempre
trabalho. Também é verdade que na cidade, salvo erro, só existem três
alfaiates. Tenho muita pena, sabe? É uma profissão em vias de extinção. Eu
gostava de ensinar miúdos, mas ninguém quer. Deviam colocar a arte de
alfaiataria no Centro de Formação. Se preciso fosse, iria pra lá ensinar de bom
grado. Dá-me uma dor no coração sentir que a minha profissão, desaparecendo os
existentes, vai acabar sem glória. Você não acha estranho, neste tempo de falta
de emprego, que ninguém se interesse? Quem manda nos nossos destinos deveria
abrir uma escola nesta área enquanto é tempo e há alguns mestres que podem
ensinar. Poucos querem trabalhar, este, verdadeiramente, é o problema do nosso
definhamento. A decadência da Baixa também passa por aí, pela falta de esforço
de quem aqui ganha a vida. Os comerciantes deveriam abrir mais cedo e encerrar
mais tarde. Nem patrões nem empregados querem ir além do mínimo. Uma pessoa vai
para Viseu e Aveiro e lá estão todos os comércios abertos. Aqui não. Já fomos a
terceira cidade do país. Agora, definitivamente, fomos ultrapassados e
estaremos aí em décimo lugar no ranking nacional. A recuperação desta zona de
antanho passa inevitavelmente pelo trabalho. Se todos não se esforçarem mais
não haverá hipótese nenhuma. Não vejo futuro para isto. A Baixa morreu muito
devido à falta de transportes públicos nas ruas largas. Os meus clientes estão
sempre a falar disso. A continuar como está, se não fizerem nada, em poucos
anos fecha tudo. A partir das 19h00 esta área desertificada passa a ser um
cemitério. Nunca vi a Baixa assim –abana a cabeça e engelha a fronte em
manifestação sentida. A Câmara Municipal
deveria participar mais nesta recuperação. Iniciativas como a Feira do Livro e
do Artesanato deveriam ser realizadas aqui e não no Parque Verde. A autarquia é
pouco bairrista. Está aqui implantada mas gosta pouco da Baixa.
Com uma nova direção, de que sou o presidente, estamos a tentar
ressuscitar das cinzas o velhinho Rancho das Tricanas de Coimbra. Já estamos a
ensaiar o rancho folclórico para o trazer para as ruas. Lamento muito que,
aquando da tomada de posse, tivesse convidado todas as forças vivas da cidade e
somente os presidentes de junta, de São Bartolomeu e Santa Cruz, tivessem
respondido à chamada. Se não ligam patavina a estas coletividades, que desde há
um século foram sempre o embrião na movida destas zonas residenciais e
comerciais, querem o quê?"
DE RASGAR O CORAÇÃO
Na velha loja de velharias,
implantada na cidade há quase duas décadas, perdida nos encontros da história e
nos cruzamentos da vida, os objetos expostos no estabelecimento tremem de dor
perante os continuados apelos ouvidos e saídos da boca de gente que merecia
mais consideração e respeito: “por favor, senhor, compre-me esta boneca. É da
minha neta! Mas o que hei-de fazer? Ela está desempregada! A minha reforma é de
duzentos e poucos euros. Nem dinheiro tenho para a farmácia –lá, já não me
fiam. Estou a passar fome, senhor. Acredite!”
No canto, um velho Gramofhone, invenção de 1887 do alemão
Emil Berliner, que nos anos loucos de 1920 alegrou e engrandeceu uma qualquer grande
casa senhorial, em face da verborreia de lengalenga da senhora idosa, parece contrair-se
em sofrimento, como se, em especulação, comparasse o seu tempo de abastança com
este início de século prenhe de quadros de miséria humana. Ao lado, um velho
relógio de torre, em lembrança de Trindades ouvidas num campo lavrado à força
de um homem suado e uma parelha de bois, toca a reboque para reunir outros
congéneres. Mas o seu chamamento não surtiu efeito. A maioria dos contadores deste
tempo que não deixa recordação, tal como os humanos, estão adormecidos, sem
corda, sem força anímica, para poder entabular reação.
Um passo à frente, e no mesmo
ambiente secular, um busto em terracota, certamente um reivindicativo
republicano do final da Monarquia, austero, de bigodes retorcidos e olhos
pregados na cena, parece pensar se teria valido a pena a mudança de sistema e
augura condenar esta política hodierna que manda para o charco a tão apregoada dignidade
da pessoa humana. Sem falar e apenas pela imagem do semblante duro, sugere que
o que está acontecer é uma tragédia social de consequências terríveis e
incomensuráveis e não pode continuar. É demasiado atroz para se poder passar ao
lado. Como a dar-lhe razão, o cuco de um relógio com o mesmo nome, um Junghans fabricado na Alemanha, solta
seis ais, gemidos e chorados, como se estivesse solidário com a causa republicana
nacional. Na mesma parede, ao lado, uma máquina portuguesa, da velhinha Boa Reguladora, praticamente engolida na
destrutiva onda da globalização, quem sabe por desprezo, nem se dignou
responder ao símbolo da indústria alemã.
Em frente, numa mesa, tosca e carcomida
pela memória e talvez fruto de um desaparecido marceneiro que pela noite dentro
ganhava a vida em suprimento familiar, umas dezenas de pratos da Fábrica de
Sacavém jazem inertes como esqueletos de engenho e arte que, dando trabalho a
milhares de pessoas até aos idos anos de 1980, foi engolida nos fumos
revolucionários da Abrilada. Numa
prateleira, uns quantos rádios a válvulas, embora mudos mas prontos a debitarem
música e notícias a qualquer momento, do seu olho-mágico avaliam todo o cenário envolvente com apatia e
misericórdia. Em frente, uns alfarrábios empoeirados, que conservam na lapela
as impressões digitais de várias gerações, sugerindo em analogia um lago de
águas paradas e sem vida, parecem questionar: o que é isto? Para onde caminhamos?
UM JANTAR PELOS COMERCIANTES
Na próxima quarta-feira, dia 22
de Maio, pelas 20h00, a Comissão Instaladora
da recém-criada Associação de
Beneficência ao Comerciante de Coimbra (ABCC), constituída por Luís
Quintans, Armindo Gaspar, Francisco Veiga, António Pereira, João Braga, Arménio
Pratas e Henrique Ramalhete, vai levar a efeito um jantar no Restaurante Jardim
da Manga. O custo do repasto será de 9 euros. Para além de se pretender um
encontro profícuo entre profissionais, a intenção maior é tentar organizar uma
ou várias listas concorrentes à eleição dos corpos-gerentes que se realizará
passada uma semana, no dia 29, entre as 9 e as 19h00, na sua sede provisória,
no Largo da Freiria, número 4, primeiro andar. Conforme a Publicação de Acto Societário através do Instituto dos Registos e do
Notariado, a apresentação pública de listas a sufrágio decorrerá entre o
dia 23 e as 19h00 do dia 28 de Maio.
Através deste meio, a Comissão
Instaladora apela a todos os profissionais que façam um esforço para
comparecerem. Num tempo de individualismo crescente, onde a miséria cava fundo
e os dramas estão ao virar da esquina, é preciso dar um pouco de nós para o bem
comum. Interroga a comissão: “podemos contar consigo?”.
RANCHO DE COIMBRA A TODO O VAPOR
Na semana passada, na
quarta-feira, sob a batuta do maestro
Manuel Manascina, realizou-se no Rancho das Tricanas de Coimbra, o primeiro
ensaio do renascido rancho. Com as cantadeiras Celeste Dourado, Almerinda
Querido, Fátima do Salvado e os instrumentistas José Malva, no acordeão, José
Alberto, no cavaquinho, o Oliveira, no bandolim, o Jaime, o Vilas e o Quintans,
nas violas. As imensas fotos de presidentes já desaparecidos até pareciam
dançar nas paredes deste velho salão. Com um grupo de dançarinos de excelência,
onde consta, entre outros, a Ana Cristina, a Susana, o Armando e o Hugo esta
velha catedral do ócio até saltava de contentamento. Quem não disfarçava, em
sorriso de orelha a orelha, a alegria sentida de ver que, pelo menos até agora,
sem qualquer ajuda, se está a iniciar uma boa obra, era o José Luís Montenegro,
o presidente da nova gerência que há pouco tomou posse.
REFLEXÃO: COINCIDÊNCIAS
Quem faz o favor de ler esta
página verifica que na rubrica “Uma
entrevista, por acaso”, realizadas a pessoas anónimas com a sua vida
imbricada na cidade, entre os entrevistados, há pontos comuns quase parecendo
passados a papel químico. Podemos ler que, entre outros, defendem a passagem
dos transportes coletivos no canal, uma nova metodologia, para o estacionamento
de rua, uma discriminação positiva da autarquia para os comerciantes. Perante
esta semelhança de opiniões, uma interrogação se depreende: quem está errado?
Eles, que aqui labutam e conhecem a terra que pisam, ou a Câmara Municipal de
Coimbra que, nadando contra a corrente e não ouvindo os cidadãos, continua a
impor o seu modelo?
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