quinta-feira, 2 de maio de 2013

O SOLITÁRIO

(Foto de Leonardo Braga Pinheiro)



 O homem está sentado no cimo do monte e o seu olhar perde-se na imensidão das ilusórias águas límpidas de um lago por si imaginado. Pelas rugas do rosto, como terra lavrada em época de sementeira, pelas cãs prateadas, pela pose de abandono ao sabor do vento, adivinha-se naquele corpo cansado muitos Invernos martirizantes. Os seus olhos, com pouco brilho, parecem angustiados e nublados pelo negrume da solidão. Como feixe de luz mortiça, estão parados lá longe, no horizonte perdido das recordações. Ele magica lentamente como só os pensamentos podem cavalgar a loucas correrias em contraste de águas calmas de balanços existenciais. Se as suas imaginações se transformassem em imagens vivas e tivessem legendas, mais que certo, mostrariam toda a sua vida passada de sacrifício.
Como um filme a preto e branco, tudo começaria umas seis décadas atrás na aldeia recôndita e enterrada no país analfabeto e perdido nas profundezas do obscurantismo. Ver-se-ia um miúdo, esfarrapado e descalço, a apanhar lenha, em aparas, no pinhal acompanhado em melodias de nota única sob o cuscar do Cuco e o piar do Mocho. Como a dar luz numa falaciosa lanterna mágica que projecta figuração numa esconsa parede, vai recordando, desenvolvendo passo a passo, toda a sua vida numa história desenvolvida em retalhos esfarrapados de esforços sem mitigação. Rasgou montes e vales, enfrentou invernos e canículas, lutou de espada em riste contra um futuro predestinado e mais que certo de indigência. Acachapado encostado ao pinheiro, dormitando sob o silêncio da natureza, sonhou ser mais igual a outros referentes conhecidos. Constituiu família e, de degrau em degrau, foi subindo na escala social. Como capitão imbuído em missão transatlântica e em que a salvaguarda da embarcação estava acima de todas as intempéries e mesmo contra a sua própria vida, retirou aos seus o peso da preocupação e poupou-lhes medos do dia seguinte não haver aurora. Vieram os filhos e proporcionou-lhes tudo o que não lhe fora dispensado. Formou-os na educação da liberdade sem levar em conta que aperfeiçoamento sem dificuldades no acesso ao ter não se formam guerreiros para a luta, mas sim animais reivindicativos que tudo julgam ter direito sem obrigatória contribuição. Sem a sentida frustração da negação das portas batidas na cara e sem a angústia de querer e não conseguir, mostrada sem despudor e em descarada manifestação de insignificância, não se fazem cidadãos construtores de colectivos e ambições legítimas sem colocar de lado o bem comum. Esqueceu-se que o sofrimento é a parte reversa que engrandece, no comparte e reparte, a felicidade. Ninguém dará valor ao contentamento se não tiver passado pelo infortúnio. Nenhum poeta feliz, que não bebeu o copo da solidão desventurada, conseguirá escrever poesia profunda e entendível. “Erro crasso”, pensa para si mesmo o homem em repetida frase expressa mentalmente. Razão tinha seu pai em martirizá-lo quando criança ao sacrificá-lo em pequenos trabalhos domésticos. Estranha forma de reconhecimento e muito tarde para dar o braço a torcer. Há muitas décadas que quem deveria ouvir esta verdade partiu para nunca mais voltar.
Para que trabalhei eu tanto, tanto?”, sofre o homem, engelhando a fronte, em solilóquio que lhe chicoteia o espírito em doses infernais de culpabilidade. Adquiri terras, montes e vales, uma encosta soalheira onde um fio de água assegurava a erva verde e dava cor à paisagem idílica onde uma casa em pedra simbolizava o esperado remanso de uma velhice ternurenta e feliz. Não passeei o que deveria; não viajei por onde queria. O meu Universo global restringiu-se entre a minha rua e o meu local de trabalho. Valeu a pena? Sobre o que angariei, pensando ser um dia o meu pé-de-meia, nada vale para quem compra. O Estado, pelo braço estendido dos governos no confisco à propriedade, nas exigências monstruosas ao pequeno comércio, e aos frutos do labor, numa deliberada intenção desmotivadora, tudo tem feito para arrastar para a lama o gosto por produzir e criar riqueza e transformar trabalhadores em bestas de empecilho social. Assiste-se, hoje, a uma cruzada contra o tangível e uma desvalorização sucessiva dos bens materiais. Hoje só tem valor o que supre uma necessidade imediata.
Aí se eu pudesse voltar atrás! As cambalhotas que eu daria; os sorrisos que distribuiria; as águas em que mergulharia; os oceanos que rasgaria; as mulheres que eu amaria. “Nunca é tarde”, pensa quem lê aqui o que o homem pensa. Mas o pensador sabe que o tempo, o seu tempo, como corda de relógio que se esgotou, passou sem dar por ele e experimenta uma sensação de debilidade. Faltam-lhe a fé anímica tracejada pelos deuses e as forças físicas que, como conquistador dos descobrimentos de há cinco séculos contra o Adamastor, outrora o empurraram contra as correntes do desânimo.



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