(Foto de Leonardo Braga Pinheiro)
O homem está sentado no cimo do
monte e o seu olhar perde-se na imensidão das ilusórias águas límpidas de um
lago por si imaginado. Pelas rugas do rosto, como terra lavrada em época de
sementeira, pelas cãs prateadas, pela pose de abandono ao sabor do vento,
adivinha-se naquele corpo cansado muitos Invernos martirizantes. Os seus olhos,
com pouco brilho, parecem angustiados e nublados pelo negrume da solidão. Como
feixe de luz mortiça, estão parados lá longe, no horizonte perdido das
recordações. Ele magica lentamente como só os pensamentos podem cavalgar a loucas
correrias em contraste de águas calmas de balanços existenciais. Se as suas
imaginações se transformassem em imagens vivas e tivessem legendas, mais que
certo, mostrariam toda a sua vida passada de sacrifício.
Como um filme a preto e branco,
tudo começaria umas seis décadas atrás na aldeia recôndita e enterrada no país analfabeto
e perdido nas profundezas do obscurantismo. Ver-se-ia um miúdo, esfarrapado e
descalço, a apanhar lenha, em aparas, no pinhal acompanhado em melodias de nota
única sob o cuscar do Cuco e o piar do Mocho. Como a dar luz numa falaciosa lanterna mágica que projecta figuração numa
esconsa parede, vai recordando, desenvolvendo passo a passo, toda a sua vida
numa história desenvolvida em retalhos esfarrapados de esforços sem mitigação.
Rasgou montes e vales, enfrentou invernos e canículas, lutou de espada em riste
contra um futuro predestinado e mais que certo de indigência. Acachapado encostado ao pinheiro,
dormitando sob o silêncio da natureza, sonhou ser mais igual a outros
referentes conhecidos. Constituiu família e, de degrau em degrau, foi subindo
na escala social. Como capitão imbuído em missão transatlântica e em que a
salvaguarda da embarcação estava acima de todas as intempéries e mesmo contra a
sua própria vida, retirou aos seus o peso da preocupação e poupou-lhes medos do
dia seguinte não haver aurora. Vieram os filhos e proporcionou-lhes tudo o que
não lhe fora dispensado. Formou-os na educação
da liberdade sem levar em conta que aperfeiçoamento sem dificuldades no acesso
ao ter não se formam guerreiros para a luta, mas sim animais reivindicativos
que tudo julgam ter direito sem obrigatória contribuição. Sem a sentida
frustração da negação das portas batidas na cara e sem a angústia de querer e
não conseguir, mostrada sem despudor e em descarada manifestação de insignificância,
não se fazem cidadãos construtores de colectivos e ambições legítimas sem colocar
de lado o bem comum. Esqueceu-se que o sofrimento é a parte reversa que
engrandece, no comparte e reparte, a felicidade. Ninguém dará valor ao
contentamento se não tiver passado pelo infortúnio. Nenhum poeta feliz, que não
bebeu o copo da solidão desventurada, conseguirá escrever poesia profunda e entendível.
“Erro crasso”, pensa para si mesmo o
homem em repetida frase expressa mentalmente. Razão tinha seu pai em
martirizá-lo quando criança ao sacrificá-lo em pequenos trabalhos domésticos.
Estranha forma de reconhecimento e muito tarde para dar o braço a torcer. Há muitas décadas que quem deveria ouvir esta
verdade partiu para nunca mais voltar.
“Para que trabalhei eu tanto, tanto?”, sofre o homem, engelhando a
fronte, em solilóquio que lhe chicoteia o espírito em doses infernais de
culpabilidade. Adquiri terras, montes e
vales, uma encosta soalheira onde um fio de água assegurava a erva verde e dava
cor à paisagem idílica onde uma casa em pedra simbolizava o esperado remanso de
uma velhice ternurenta e feliz. Não passeei o que deveria; não viajei por onde
queria. O meu Universo global restringiu-se entre a minha rua e o meu local de
trabalho. Valeu a pena? Sobre o que angariei, pensando ser um dia o meu pé-de-meia,
nada vale para quem compra. O Estado, pelo braço estendido dos governos no
confisco à propriedade, nas exigências monstruosas ao pequeno comércio, e aos
frutos do labor, numa deliberada intenção desmotivadora, tudo tem feito para
arrastar para a lama o gosto por produzir e criar riqueza e transformar
trabalhadores em bestas de empecilho social. Assiste-se, hoje, a uma cruzada
contra o tangível e uma desvalorização sucessiva dos bens materiais. Hoje só
tem valor o que supre uma necessidade imediata.
Aí se eu pudesse voltar atrás! As cambalhotas que eu daria; os sorrisos
que distribuiria; as águas em que mergulharia; os oceanos que rasgaria; as
mulheres que eu amaria. “Nunca é tarde”, pensa quem lê aqui o que o homem
pensa. Mas o pensador sabe que o tempo, o seu tempo, como corda de relógio que
se esgotou, passou sem dar por ele e experimenta uma sensação de debilidade. Faltam-lhe
a fé anímica tracejada pelos deuses e as forças físicas que, como conquistador
dos descobrimentos de há cinco séculos contra o Adamastor, outrora o empurraram
contra as correntes do desânimo.
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