UMA ENTREVISTA, POR ACASO…
Praticamente, com raras excepções,
almoço todos os dias no “Marcius”, na
Rua da Sofia. Enquanto estou sentado num dos bancos do balcão, do pequeno snack-bar onde cabe apenas uma
dezena de pessoas um pouco apertadas, vou mirando o aspecto cansado do casal Victor
Pereira e da Graça Santos –a Dona Graça, como é gentilmente tratada por todos,
pelo respeito conquistado à força de trabalho, da luta e do sacrifício diário.
Enquanto mastigo as habituais delícias pantagruélicas, inimigas do meu ventre e
que me deveria tornar comedido, sou sempre acometido por dois pensamentos. Um
deles é o facto da Dona Graça ser, para mim, a melhor cozinheira da cidade e,
como águia aprisionada cujo destino é voar, ter de se manter engaiolada ali num
espaço tão exíguo e não poder mandar-se ao vento; outro é eu sentir que, por
tal pitéu primoroso, pago tão pouco e estou a participar numa injustiça, onde o
mérito não está a ser legitimamente relevado e ressarcido. Desde há meia dúzia
de anos, quando entre 2007 e 2009, foi assaltada 15 vezes no seu anterior
estabelecimento, na Rua Velha, e, pela passividade camarária foi obrigada a
claudicar, que passei a ver esta senhora como modelo de uma descomunal força
invisível que se apreende mas não se vê. Vamos ouvir a Dona Graça:
“Tenho muita saudade da Rua Velha, senhor Luís –e uma lágrima
mais afoita começa a balouçar entre cai e não cai. Foram muitos anos. Mais de uma dezena que por lá passei. Embora
seja aqui muito bem tratada por toda a clientela, e também esteja na Baixa, lá,
na Baixinha –porque há mesmo duas classificações em divisória para a mesma
área-, onde tinha a minha tasca, era um ambiente diferente. Naquelas ruas
estreitas está o coração, o pulsar de vida, a essência natural das coisas. A
sua ambiência pitoresca, peculiar, pura, é como um cosmo no Universo, uma
pequena aldeia no meio de uma grande cidade onde todos se conhecem. Ali tinha a
amizade sincera, a camaradagem. Deixei lá muitos amigos. Ainda que, volta e
meia, me visitem já não é a mesma coisa. Embora estejamos apenas separados por
uma rua larga as pessoas afastam-se. Tenho mesmo muitas saudades desse tempo –e
os seus olhos parados ficam presos numa imagem perdida no vácuo. Graças a Deus, o meu negócio aqui, na
Rua da Sofia, está a correr bem. Tenho muita clientela. O problema é que, para
o manter, sou obrigada a levar barato e tenho pouco lucro. Trabalho cada vez
mais para ganhar cada vez menos. Quer dizer, como sou poupada e trabalhadora,
tenho as minhas contas em dia, entende? Também faço por isso. Esforço-me muito,
sabe? Trabalho 14 horas por dia, sábados e domingos. Depois deste meu horário
ainda vou fazer umas horas para outro serviço externo ao meu snack. Tenho de me
multiplicar para fazer face às despesas. Naturalmente que nesta descrição
incluo o empenho do meu Victor, o meu marido, que trabalha aqui comigo a tempo
inteiro.
Às vezes custa-me a entender a razão de as pessoas não virem à Baixa.
Esta zona tem tudo. Por cá compra-se mais barato do que nas grandes
superfícies. Há melhor qualidade nos produtos. Sendo assim, porque se afastam
as pessoas da zona histórica? Interrogo-me e não consigo chegar a uma
conclusão. Houve interesses em licenciar as grandes superfícies. Por parte dos executivos
dos últimos 20 anos, houve desleixo e um deixar-correr o marfim. A cidade já há
muito que está esgotada na oferta. No entanto, pasme-se, continuam os
licenciamentos. Nunca se fizeram estudos de impacto comercial. Trataram sempre
os comerciantes da Baixa como coisas descartáveis. Sinto uma profunda raiva, e,
ao mesmo tempo, uma intensa frustração que me consome a alma; uma impotência
surda pelo que está acontecer. Os comerciantes também têm muita culpa no
cartório; aceitaram sempre tudo, sem um queixume, um ai. Nunca levantaram a
voz. Se eu pudesse encerrava a Baixa durante uma semana. Talvez assim,
residentes na cidade e políticos da Praça 8 de Maio, verificassem que faz
falta. Nunca aceito propaganda no meu bar das grandes superfícies. Isso é que
era bom! Se não nos deixam lá publicitar os nossos produtos vêm para aqui?
Homessa! Estas grandes áreas foram as grandes responsáveis pelo estado a que
isto chegou. Foram a bomba de neutrões que tudo destruiu, história, edificado,
vidas, famílias inteiras. Os políticos da última vintena de anos, que passaram
nos paços do concelho e contribuíram para a degradação ambiental desta zona,
deveriam ser todos julgados em processo comum por atentado à dignidade da
pessoa humana. Sinto uma enorme tristeza –encolhe o queixo, cerra os
dentes, e novamente os olhos se inundam. Quando
vejo comerciantes, que trabalharam toda a vida e contribuíram para a Segurança
Social, encerrarem e ficarem na miséria dá-me uma dor no peito. Porra! Não se
trata assim nem os animais quanto mais gente!
Acredito no futuro da Baixa. Mas sabe? O problema é que a recuperação vai
demorar mais de uma década. E quem é que lá chega? Dos que estão agora, quase
de certeza, nem um lá vai chegar para festejar! O executivo municipal deveria
dar amparo. Não quer saber. O estacionamento público deveria ser gratuito
durante as primeiras duas horas para permitir que mais gente cá viesse comprar.
Perante o que está acontecer, os dramas estão à vista de todos –você sabia que
amputaram uma perna ao senhor Manuel Magalhães, da desaparecida Sapataria Reis?
Coitado! Acabar assim! A edilidade deveria isentar todos os novos
licenciamentos para investimento e desonerar as taxas de toldos e publicidade a
quem cá está e faz um esforço danado para se aguentar. Não se sente nenhum
apoio por parte da autarquia. É assim uma coisa estranha, que está no meio de
nós mas não faz parte de nós –e note, este sentimento já vem de longe. Não digo
isto por questões partidárias. Essa questão dos partidos transcende-me. Eles,
como reis num palácio, estão lá mas não sabem nada do que se passa aqui nas
ruas, nas lojas, nas casas com pessoas a passarem fome. O deles, o seu
ordenado, está certo, sabe? Esse, verdadeiramente, é a causa de todos os nossos
problemas. Estamos a ser dirigidos por pessoas que não têm o mínimo de sensibilidade
social. Com tantos edifícios devolutos, levam daqui cada vez mais serviços
públicos e transferem-nos para a periferia. Querem o quê? Eu gostava de ter um
presidente de Câmara dinâmico, que olhasse nos olhos os pequenos comerciantes.
Estive tantos anos na Rua Velha e aqui há cerca de cinco anos e, nem este
(Barbosa de Melo) nem o anterior (Carlos Encarnação), nunca os vi no meu
estabelecimento. Gostava de ver um presidente, pelo menos uma vez num mandato e
fora da campanha eleitoral, a entrar por aquela porta e que me cumprimentasse.
Por culpa deles, há um enorme divórcio entre os políticos eleitos e nós,
pequenos empresários. Estamos a viver um momento de sufoco. Para nos
aguentarmos deveriam embaratecer a Luz, a água, as taxas, os impostos. Como se
colocassem uma gota de veneno diariamente no nosso prato, estão a matar-nos
lentamente. Se continuar assim é impossível sobrevivermos.
Penso muitas vezes em abandonar a Baixa –por vontade do meu Victor já tinha ido há
muito. Mas sabe? Não gosto de deixar nada a meio. Não gosto de desistir. Se
fosse mais nova emigrava. Cada vez me sinto menos gente e mais coisa com as
pessoas responsáveis pelo nosso destino. Sinto-me inferior, discriminada. Sinto
ser um joguete nas mãos e na vontade de quem nos governa. Apesar de tudo, ainda
conservo alguma esperança que isto um dia mude. Este sistema que nos rege está
falido. Temo muito pelos meus netos. Acredita?”
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