LEIA AQUI O DESPERTAR DESTA SEMANA
Para além do texto "UMA ENTREVISTA, POR ACASO", deixo também as crónicas "O Solitário"; e "REFLEXÂO: A FORMIGA E A CIGARRA"
UMA ENTREVISTA, POR ACASO…
Há muitos anos que, volta e meia,
visito o “médico podologista” dos
meus sapatos, o Rui Pedro Saraiva. O seu consultório
de atendimento familiar fica situado ali na Rua Pedro Rocha, junto à sede deste
jornal e, para quem não souber, nas traseiras da 2ª Esquadra da PSP. Aprecio a
sua simpatia, a sua generosidade, o seu conhecimento profundo da saúde das
minhas alpercatas. Com um simples olhar técnico realiza um chek-up e diagnostica imediatamente uma operação rápida de manutenção.
As amantes dos meus pés estão de tal
modo habituadas ao seu carinho e sensibilidade que, sem que eu nada faça por
isso, amiúde, levam-me ao seu atelier
nem que seja para saber das últimas,
frescas e boas. Como bom técnico sapateiro que se preze, o Rui, com 44
anos, tem uma perspectiva geral da política local, europeia e mundial. Para
além de profissionalmente conhecer bem as linhas com que cose tudo o que é
artigo de marroquinaria, tem também opinião. Vamos ouvi-lo:
“Estou aqui na zona de Montarroio, na Baixa da cidade, a trabalhar por
conta própria há cerca de 25 anos. Já passei por tempos melhores e menos bons.
Desde sempre encarei a vida sob o prisma do trabalho. Desde que me conheço, as
coisas nunca foram fáceis para mim, mas agora, desde fevereiro, o movimento
está uma desgraça. Nota-se que as pessoas não têm dinheiro. Não está fácil para
aguentar. Os clientes mandam arranjar mas, depois, não levantam. Isto, apesar
de eu até praticar o pré-pagamento como precaução. São poucos os que pagam
previamente. Dizem: “não vinha a contar em pagar já. Arranje que depois pago”.
Mas muitos, como andorinhas migratórias, perdem-se por outras paragens e não voltam
mais. Tenho calçado armazenado há três e quatro anos. A Baixa está muito
debilitada. Muito doente. Todos os operadores comerciais se queixam. Têm
encerrado muitos estabelecimentos. Olha comigo, e avança para a porta. Esta minha rua, há uma década, estava
cheia de comércio. Ali era uma casa de móveis, ali um quiosque, acolá uma loja
de artigos vários, ali à frente uma loja de decoração. Hoje estão todas com
jornais nos vidros.
A Câmara Municipal deveria dar incentivos a quem investe ou tem o seu
negócio. Por exemplo, provisoriamente, nesta fase complicada, deveria isentar
as taxas de toldos reclames e publicidade. Para além disso, no estacionamento
de rua, deveria utilizar a mesma metodologia que pratica no Mercado Municipal:
dar, pelo menos, a primeira meia hora a cada visitante para poder comprar uma
calça ou uma camisa. As artérias do canal, Ferreira Borges e Visconde da Luz,
já há muito que deveriam ter sido repostos os transportes coletivos. Passa lá o
“Pantufinhas” mas não chega. Toda a gente vê que são precisas soluções
imediatas para mudar o situacionismo de degradação continuada. Falam, falam,
mas ninguém faz nada. A paisagem, essencialmente para quem nos visita, é
alucinante. É triste e medonha. As lojas, em corrupio, estão constantemente a
fechar. As rendas praticadas, a maioria delas acima de mil euros, são outro
cancro e estão a minar a débil economia desta zona comercial. A autarquia
deveria criar mecanismos para obrigar os proprietários a arrendar os seus
espaços. Uma loja de comércio só deveria poder estar encerrada no máximo meio
ano. Se, por parte do Governo, houvesse legislação não assistíamos a esta pouca
vergonha. Se é preciso revitalizar a zona histórica o esforço deve ser feito
por todos e não apenas por quem aqui tenta ganhar a vida. Estou preocupado. Há
muito menos trabalho. As pessoas não mandam arranjar o calçado porque estão
desempregadas. Com esta política de austeridade não acredito no futuro. Se não
fosse a minha família já teria emigrado. Portugal só serve para os grandes, os abastados,
viverem. Os meus filhos, se calhar, irão ser emigrantes. Lamento muito pela
sorte deles. Pelo meu esforço e da minha mulher, mereciam melhor ventura. A
Nação deveria gerar oportunidades para os nossos descendentes, que são a
essência, o ADN populacional. Sobretudo para os sedentarizar e aqui criarem
raízes. Qualquer dia este País nem é para novos nem para velhos. É simplesmente
um gigantesco lar de idosos.
O SOLITÁRIO
O homem está sentado no cimo do
monte e o seu olhar perde-se na imensidão das ilusórias águas límpidas de um
lago por si imaginado. Pelas rugas do rosto, como terra lavrada em época de
sementeira, pelas cãs prateadas, pela pose de abandono ao sabor do vento,
adivinha-se naquele corpo cansado muitos invernos martirizantes. Os seus olhos,
com pouco brilho, parecem angustiados e nublados pelo negrume da solidão. Como
feixe de luz de mortiça, estão parados lá longe, no horizonte perdido das recordações.
Ele magica lentamente como só os pensamentos podem cavalgar a loucas correrias
em contraste de águas calmas de balanços existenciais. Se as suas imaginações
se transformassem em imagens vivas e tivessem legendas, mais que certo,
mostrariam toda a sua vida passada de sacrifício.
Como um filme a preto e branco,
tudo começaria umas seis décadas atrás na aldeia recôndita e enterrada no país analfabeto
e perdido nas profundezas do obscurantismo. Ver-se-ia um miúdo, esfarrapado e
descalço, a apanhar lenha, em aparas, no pinhal acompanhado em melodias de nota
única sob o cuscar do Cuco e o piar do Mocho. Como a dar luz numa falaciosa lanterna mágica que projeta figuração numa
esconsa parede, vai recordando, desenvolvendo passo a passo, toda a sua vida
numa história desenvolvida em retalhos maltrapilhos de esforços sem mitigação.
Rasgou montes e vales, enfrentou invernos e canículas, lutou de espada em riste
contra um futuro predestinado e mais que certo de indigência. Acachapado e encostado ao pinheiro, dormitando
sob o silêncio envolvente e diáfano, transparente, da natureza, sonhou ser mais
igual a outros referentes conhecidos. Constituiu família e, de degrau em
degrau, foi subindo na escala social. Como capitão imbuído em missão
transatlântica e em que a salvaguarda da embarcação estava acima de todas as
intempéries e, mesmo atentando contra a sua própria saúde e vida, retirou aos
seus o peso da preocupação e poupou-lhes medos aflitivos de no dia seguinte não
haver aurora. Vieram os filhos e proporcionou-lhes tudo o que na sua infância
não lhe fora dispensado. Formou-os na educação
da liberdade sem levar em conta que aperfeiçoamento sem dificuldades no
acesso ao ter não se formam
guerreiros no ser para a luta, mas
sim animais reivindicativos que tudo julgam ter direito sem uma obrigatória contribuição
retributiva. Sem a sentida frustração da negação das portas batidas na cara e
sem a angústia de querer e não conseguir, mostrada sem despudor e em descarada
manifestação de insignificância, não se fazem cidadãos construtores de coletivos
e ambições legítimas sem colocar de lado o bem comum. Esqueceu-se que o
sofrimento é a parte reversa que engrandece a felicidade, no comparte e reparte.
Ninguém dará valor ao contentamento se não tiver passado pelo infortúnio.
Nenhum poeta feliz, que não bebeu o copo da solidão desventurosa, conseguirá
escrever poesia profunda e entendível, tocada de sentimento.
“Erro crasso”, pensa para si mesmo o homem sentado em repetida frase
expressa mentalmente. Razão tinha seu pai em martirizá-lo quando criança ao
sacrificá-lo em pequenos trabalhos domésticos. Estranha forma de reconhecimento
e muito tarde para dar o braço a torcer.
Há muitas décadas que quem deveria ouvir esta verdade partiu para nunca mais
voltar.
“Para que trabalhei eu tanto, tanto?”, sofre o homem, engelhando a
fronte, em solilóquio que lhe chicoteia o espírito em doses infernais de
culpabilidade. Adquiri terras, montes e
vales, uma encosta soalheira onde um fio de água assegurava a erva verde e dava
cor à paisagem idílica onde uma casa em pedra simbolizava o esperado remanso de
uma velhice ternurenta e feliz. Não passeei o que deveria; não viajei por onde
queria. O meu Universo global restringiu-se entre a minha rua e o meu local de
trabalho. Valeu a pena? Sobre o que angariei, pensando ser um dia o meu
pé-de-meia, nada vale para quem compra. O Estado, pelo braço estendido dos
governos no confisco à propriedade, nas exigências monstruosas ao pequeno
comércio e indústria artesanal, e aos frutos do labor, numa deliberada intenção
desmotivadora, tudo tem feito para arrastar para a lama o gosto pela produção e
criação de riqueza. Parece deliberadamente querer transformar trabalhadores em
bestas de andarilho e empecilho social. Assiste-se a uma cruzada infernal contra
o tangível e uma desvalorização sucessiva dos bens materiais. Hoje só tem valor
o que supre uma necessidade imediata.
Aí se eu pudesse voltar atrás! As cambalhotas que eu daria; os sorrisos
que distribuiria; as águas em que mergulharia; os oceanos que rasgaria; as
mulheres que eu amaria. “Nunca é tarde”, imagina quem lê aqui o que o homem
pensa. Mas o pensador sabe que o tempo, o seu tempo, como corda de relógio que
se esgotou, passou sem dar por ele e experimenta uma sensação de debilidade e
frustração. Faltam-lhe a fé anímica tracejada pelos deuses e as forças físicas
que, como conquistador dos descobrimentos de há cinco séculos contra o
Adamastor, outrora o empurraram contra as correntes do desânimo e conquista de
um mundo novo.
REFLEXÃO: A FORMIGA E A CIGARRA
Há dias lembrei-me de mandar um e-mail à minha amiga Helena. Ela é
ligeiramente mais nova do que eu, já ultrapassou o meio-século, e morava na
zona de Leiria. Há cerca de um ano que não sabia nada da sua vida. Como murro
no estômago desferido à queima-roupa, a resposta veio assim: “Estamos no Canadá,
desde setembro do ano passado. O negócio do meu marido começou a correr mal e,
como tinha cá o meu irmão, pedi-lhe que me ajudasse. Estamos ambos a trabalhar.
Eu estou a lavar pratos num restaurante, mas não me importo nada. Tenho
trabalho e isso é que importa”. A Helena era professora em Portugal.
Neste domingo, último, foi o
Cortejo da Queima das Fitas. Apesar de ainda agora ter saído legislação sobre a
venda de álcool, tal como em anos anteriores, sobretudo nos estudantes, o clima
etílico na cidade atingiu o vermelho rubro. Quem esteve presente, neste dia, na
zona de Celas, certamente se terá apercebido do corrupio de ambulâncias a caminho
do hospital durante a tarde. Entre o comprometimento da geração da Helena, que
por força das circunstâncias se viu obrigada a emigrar, e a irresponsabilidade
dos seus descendentes há qualquer coisa que nos faz temer pelo futuro.
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