quinta-feira, 10 de abril de 2008

QUO VADIS COMÉRCIO TRADICIONAL?





José, nascido e criado para os lados de Penacova, com pouco mais de 10 anos, depois de ter concluído o ensino primário, começou a trabalhar numa loja de fazendas ali na Praça do Comércio. A Segunda Guerra Mundial, pela escassez de bens, ainda estava fresca na memória. Apanhavam-se os últimos estilhaços e, como um puzzle, tentava-se dar ordem a um certo caos reinante, sobretudo na procura e na oferta económica.
Apesar de Salazar ter evitado o envolvimento de Portugal neste grande conflito bélico, mesmo assim, não evitou o racionamento e alguma fome nas aldeias e cidades. Os tempos que se viviam eram duros. Os então caixeiros de comércio trabalhavam de sol-a-sol, apenas com o Domingo de folga, quando calhava. Eram tratados pelos seus patrões com violência verbal e física, sobretudo se não conseguiam vender um metro de tecido ao freguês para fazer a saia. José lembrava-se de apanhar brutais “caneladas” dadas pelo seu patrão, mesmo enquanto atendia o freguês. Era verdade que ele não se manifestava, mas reconhecia no marçano qualidades acima do comum e uma intuição especial para o negócio.
Com pouco mais de 20 anos, José, com muitos sacrifícios e uns contos de reis emprestados, adquire a sua primeira loja e, logo a seguir, o seu primeiro carro Honda, em segunda mão.
Quando se deu o 25 de Abril de 1974, a revolução apanhou-o a trabalhar arduamente dia e noite com os seus 10 empregados. Era proprietário de três lojas de pronto-a-vestir na Baixa. Com os novos ventos de mudança no país os salários passaram de mil escudos (5 euros) para cerca de três mil escudos (15 euros) por mês. Nunca até aí os assalariados se tinham visto com tanto dinheiro. A consequência deste aumento foi uma frenética onda consumista. Foi uma correria para as lojas de comércio, nesta altura, centralizado então na Baixa histórica de Coimbra. Para aqui, para a zona histórica, confluíam todo o concelho e distrito de Coimbra. Aqui eram realizados todos os desejos. Numa variedade incomensurável de oferta, desde a almotolia em folha de flandres até uma albarda para burro, tudo por cá se vendia. Aliás, e por isso mesmo, por a procura ser superior à oferta o negócio prosperava e não havia mãos a medir.
Depressa José se apercebeu que o comércio de rua iria atravessar os seus melhores tempos de ouro. Empenhou-se pessoalmente nas vendas diárias das suas lojas. Para cada cliente entrado nos seus estabelecimentos, no seu entender, deveria corresponder uma venda. Com uma pressão envolvente e sentida, os seus empregados sabiam que não podiam falhar, caso contrário lá tinham de ouvir os ralhetes intempestivos do patrão.
O cliente queria uma camisola vermelha? Azar, só havia azul-marinho! Não importava! Ficava o cliente a saber que não devia comprar vermelho. Para além de não se usar, não dava com o seu tom de pele. “Veja como lhe fica bem o azul-marinho”, argumentava o funcionário, encostando a malha ao rosto do comprador, tentando convencer, e pensando para si: “se é mais uma “xizada” (se não vendo) estou tramado, lá tenho de ouvir o “Jota. Deus queira que ele compre!”.
Sem exagero, José tinha os melhores vendedores do comércio de Coimbra. Eles sabiam que o prémio da sua aplicação, no fim do ano, seria generoso e muito bem recompensados pelo patrão.
Investiu na construção civil, comprando vários edifícios por toda a cidade e mais estabelecimentos na Baixa. Em 1990 tinha 38 funcionários e 8 lojas, todas juntas, umas às outras. Na cidade era difícil lembrar a moda e a sua grande variedade de artigos sem falar em José Coimbra.
José acreditava na Social Democracia, e era fã de Sá Carneiro. Com a morte deste fundador do PPD/PSD, em Dezembro de 1980, o grande comerciante sofreu o seu primeiro desaire em projecto político-partidário. Abominava “os comunas”, “esses vermelhos que hão-de levar este país à desgraça”, espalhava por entre o seu meio, enfatizando com solenidade profética.
Quando o governo de Cavaco Silva caiu para Guterres, em 1995, José começou a ver-se cabisbaixo e preocupado com o rumo do país, e do comércio de rua. A partir daí, ninguém mais o viu sorrir. As rugas de preocupação assentaram arraiais na sua fronte para nunca mais levantarem. Nesta altura, tinha 30 empregados e a facturação das suas lojas decaía diariamente.
Morreu em Outubro de 2000, sem saber que “os comunas”, de que tanto receava, afinal eram os ultra-liberais que impregnavam o interior do seu amado partido PSD/PPD.
Sem o desejar, deixou uma bomba-relógio para o seu filho-varão resolver. Em 2004 ainda trabalhavam naquela outrora grande firma 25 funcionários, a maioria com mais de 30 anos de antiguidade.
Hoje o filho mais velho do extinto José Coimbra tem 10 funcionários. As vendas das suas agora 3 lojas não chegam para pagar os impostos. Muito menos ainda para pagar os ordenados.
Sem lhe restar outra alternativa, requereu a insolvência da firma que foi a menina dos olhos de seu pai. Vai encerrar definitivamente em Junho deste ano da (des)graça de 2008. Com o “féretro” desta grande firma, que faz parte dos anais históricos comerciais da cidade, vai-se um pouco de mim, um pouco de muitas centenas de pessoas –talvez mais de um milhar-, que ali aprenderam o “bê-à-bá” do comércio tradicional.

É caso para interrogar: Para onde vais, para onde caminhas, comércio de rua? Ao escrever isto, sinceramente, não consigo conter uma lágrima vadia de revolta.

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