Eu sabia ao que ia. Não esperava mantos de prantos nem gritos desesperados de “não me abandones”, como se estivesse a viver um filme de terceira série. A verdade é que o epílogo, ou o começo de um novo capítulo, já se começara a delinear há muito. Ambos, antecipadamente, começáramos a traçar planos há muitos meses atrás. Este final infeliz ou começo feliz –o tempo o dirá- fora pensado e cuidadosamente planeado com cenários hipotéticos, ensaiados mentalmente, como tentando prevenir fenómenos marginais. Esta peça teatral perdeu o seu prazo de validade. Estava obsoleta. Nada dizia aos mais novos. O público assistencial diário à representação resumia-se a quatro pessoas. Nós dois, actores, e dois filhos. Que, precisamente pela ligação platónica, assistiam na plateia, sem disfarçar enfado, entre um bocejo e um dormitar, a uma cada vez mais medíocre representação. Eram constantes as discussões. A culpa do insucesso da peça, ora era meu, ora era dela. Dependia dos dias.
Estávamos a encarnar, nesta trama, os papéis principais de actores pouco reconhecidos publicamente. Afinal este fora o nosso único papel em que entrámos juntos e saímos separados. Nunca teve muito público. Quando começou, há 30 anos anos, a ser exibida, foi um sucesso de bilheteira. Não que a história da peça fosse muito original ou diferente do que qualquer outra. Dois jovens que casam cedo, quase na puberdade, sem qualquer experiência de vida, fugindo ao controlo cerrado dos pais dela. Ambos sem nada, nem dinheiro para comprar fosse o que fosse. Ele, pé descalço assumido, querendo construir algo material, que lhe permitisse um dia a ele e a toda a sua família levarem uma vida melhor do que ele levara até aí. Para que os seu filhos não tivessem de sentir vergonha de um qualquer grupo e se sentissem integrados, não tendo que se autoexcluir pelos seus imensos complexos de inferioridade por serem muito pobres. Como se depreende uma “estória” corriqueira, tão própria daquela geração, sonhadora, fatalista e construtora, dos nascidos na década de 1950.
Lembro-me, do dia da estreia, toda a família assistiu. Vieram imensos amigos e até aqueles que depois desse dia nunca mais voltámos a ver. Uns morreram na nossa memória, outros procuraram naturalmente, sem que déssemos por isso, outras vidas, ou outro mundo periférico. Hoje o que resta deles é pouco mais do que um laivo de recordação nas nossas mentes. A mim batiam-me nas costas e entre o “dá cá um abraço pá”, um aperto de mãos de “parabéns e que sejam muito felizes” e a entrega, quase envergonhada, de um envelope com uma nota de mil escudos, ou então o apontar de mais uma peça de louça repetida até à exaustão. À minha comparte ofereciam rosas brancas, camélias amarelas e um beijinho de felicidade, sempre acompanhado de uma recomendação: “que a alegria deste dia se repita por muitos e longos anos”.
Era compreensível, por falta de público, carência de entendimento, ou talvez falta de entrosamento entre os actores, este final. Ontem encerrámos o teatro de produção independente. Aquela peça “finish”, “ce fini”, acabou. Acabou mesmo? Ou encerrou-se temporariamente com carácter definitivo? Não sei. Será que fizemos tudo para manter a peça em cena? Não deveríamos mudar os cenários? O problema é que entre um conservadorismo inamovível, mexilhão de posições agarradas à pedra filosofal e entre um pensamento liberal, levitante, prosador das rimas poéticas do sonho libidinoso, o resultado é o encerramento do Teatro. Aqueles cenários vão manter-se na nossa memória e mesmo quando partirmos para outras representações, aquelas cadeiras de madeira, os velhos lustres, os reposteiros que custaram tanto a adquirir –foram pagos a prestações- e até aquele sorriso desbragado, no meio daquela cena patética, onde era suposto haver rios de lágrimas tumultuosas, mas que não fora possível conter, tudo isso vai manter-se no futuro das nossas vidas, como um velho cicerone que à frente leva a candeia acesa ao vento, a balouçar, pelo meio de um caminho comparativo, “entre o que sou”, “o que fui”, “como eras” “e o que tenho agora”. Um balanço existencial que nos acompanhará para o resto da nossa vida.
A mala estava feita. As mulheres nunca perdem a simbologia de um momento. Mesmo que estejam a desfazer-se em lágrimas, a imagem será sempre a de uma guerrilheira de face dura, insensível, como a mostrar que a fragilidade e a diferença de género já foi. Hoje, tal como o velho aforismo de que um homem nunca chora, a mulher, como princípio de afirmação, segue-lhe as pisadas e, sabendo nós que depois do ribombar do bater da porta, os olhos vão liquefazer-se em mil prantos, à frente do homem... nunca chora.
Peguei na mala e, naqueles poucos metros, entre a porta e o carro, olhei para tudo à volta, como um pouco da minha alma que ali fica. Aquele foi o meu teatro durante 30 anos. Ali amei, ali consertei, ali planeei, ali escrevi, ali idealizei. Uma lágrima teimosa mostrou que afinal os homens também choram.
2 comentários:
Um homem nunca chora. Fazes bem. Para quê??? Se foi provavelmente a melhor decisão da tua vida... Não perdes-te, antes pelo contrário... ganhas-te.
Um homem nunca chora.
Um homem com essa sorte... só deve rir!!!!
Um homem, nunca chora ????
Não sou dessa opinião, um homem chora quando tem que chorar e ri, quando tem que rir. E o momento era mesmo para chorar,porque nao estavas feliz por aquilo que ias ganhar, mas infeliz por aquilo que estavas a perder. Não era tua mulher que estavas a perder, mas sim a simbologia, do que è ter uma familia, para o que der e vier.
Se foi bom, se foi mau, o tempo o dirá, mas se tiveres que voltar atras volta, doa a quem doer.
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