A senhora, de cerca de setenta e poucos anos, entrou na loja como se procurasse tudo e nada em especial. Os seus olhos macilentos, barrados a negro, por profundas olheiras, pareciam procurar nos objectos antigos algo a que se agarrar, como andorinha recém-saída do ninho, titubeante e insegura no voar. Vinha de negro carregado, como se essa manifestação no preto, pesado, carregasse toda a sua dor e, como bandeira, quisesse mostrar ao mundo de que era uma sofredora. Uma voluntária sofredora. Ali o luto, no seu corpo, era muito mais que a expressão da dor, era a autopenalização por não ter partido primeiro que o seu companheiro de vidas partilhadas de mais de meio século.
-Posso ajudá-la nalguma coisa? Interroguei com voz doce, como adivinhando que esta mulher não queria comprar nada. Se o pudesse fazer, com poder arbitrário, compraria o impossível de adquirir: a vida.
-Desculpe, não quero nada ou talvez quisesse, mas o que quero o senhor não me pode vender ou dar. Há tanto tempo que não venho à baixa!... Há cerca de cinco anos que não saio de casa… durante todos estes anos estive sempre ao lado do meu marido. Estava acamado. Partiu, há menos de trinta dias, para não mais voltar. Faz-me muita falta –remata a dama de negro.
-Entendo -replico, sabendo que a sua necessidade mais premente era ser ouvida-, certamente, era muito bom para a senhora, como pessoa e essas suas qualidades marcaram-na…
-Não, está enganado. –interrompe-me, abruptamente. Quando era novo, nunca cheguei para contentar o seu apetite voraz, teve sempre outras mulheres. Era muito ciumento, eu não podia conversar com ninguém e muito menos se fosse homem. Fazia-me a vida negra.
-Mas, sendo assim, –interrogo-, nunca pensou em separar-se? Certamente tratava-a mal…
-Separar? Casámo-nos em 1952…nessa altura o casamento era para toda a vida. Era um escândalo se alguém se separasse. Se eu o fizesse, era o bastante para o bairro inteiro deixar de me falar. Sim, chegou a bater-me várias vezes…-as lágrimas acabaram por rolar, eu olhava para os seus olhos e, esperava a todo o momento ver cair as gotas segregadas pelas glândulas lacrimais. Entre o cai, não cai, o pranto venceu a sua aparente lucidez de serenidade.
-Há cinco anos –prossegue no seu relato- teve um AVC (acidente vascular cerebral) e ficou acamado, nunca mais se levantou. Aí conheci o seu lado mais egoísta e cruel. Insultava-me de todos os nomes possíveis e imaginários. Se lhe faltasse um bocadinho que fosse gritava desalmadamente: “puta…andas a dá-la..não é?!...como não te posso valer…”
-Só era senhora de sair de casa para comprar os géneros alimentícios no supermercado ao lado. Estes cinco anos foram um martírio. Uma prisão voluntária.
-Pois entendo o que passou, imagino, -retorqui, franzindo o sobrolho- felizmente acabou, pode recomeçar a viver. Tente cortar com todas essas recordações que lhe causam tanta dor. Expulse tudo que lhe avive a memória. Corte o mais depressa que puder com o luto, tente não o perpetuar.
-Isso é fácil de dizer. Sabe que tenho saudades dos seus gritos ecoando por toda a casa? Sinto a casa vazia…sinto a falta dele –e mais uma vez o pranto se soltou nos seus olhos como uma Maria Madalena.
(HISTÓRIA VERÍDICA)
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