Vasco tem 17 anos. Desferindo várias facadas, acabou de tirar a vida a seu irmão de 12 anos. Preso em prisão preventiva, no Estabelecimento Prisional de Leiria, na sua cela, sentado no pequeno catre, como um pensador, que Rodin tão bem soube personalizar através duma imagem apologética, o rapaz, de rosto fechado, hermético de sensações, de cabeça inclinada, braço direito cruzado sobre o estômago e braço esquerdo a apoiar o queixo, faz a retrospectiva do que o levou a cometer tão hediondo crime.
Tudo começou quando nasceu o seu irmão mais novo, tinha então cinco anos. Lembra-se que até aí era o centro de atenções dos seus pais. A vinda do seu germano mais novo veio invadir um espaço que, até aí, era só seu. Não sabe se por descuido dos seus pais ou por egoísmo exacerbado, a verdade é que a vinda do rebento veio fazê-lo sentir-se menos amado do que até aí. Ressentido e sentindo-se excluído na envolvência familiar, nunca mais recuperou e nem o tempo, que deveria ter feito a harmonização de interesses, veio curar essa mágoa, como ferida dilacerante que nunca cicatrizara. Cada brinquedo que era dado ao seu irmão mais novo, Vasco, sentia no corpo o mesmo efeito agressivo da picada de uma seta enviada de local desconhecido, mas prenha de azedume, violência e ódio. Aos poucos, sem o demonstrar foi desenvolvendo um sentimento de inveja, ciúme e complexos de inferioridade. A rivalidade era uma constante e nunca se estabelecera uma verdadeira relação de afectividade entre ambos.
Por ser o benjamim ou não, a verdade é que, aos olhos de Vasco, os progenitores mimavam e valorizavam sempre mais qualquer média atitude ao miúdo, do que uma boa nota, dele, tirada a ferros naquele ponto de francês. Para ele, era sempre a mesma expressão de descontentamento dos seus pais: “só 3?...estudas muito pouco!”
Com a entrada na adolescência, Vasco, foi-se tornando cada vez mais reservado. Aos poucos, sem o sentir, foi canalizando na figura da mãe todo o ressabiamento que sentia em relação ao seu irmão mais novo. Era como se ela, hipoteticamente, fosse a causadora do corte umbilical que os deveria unir. A sua mãe era assim a projecção de um ódio recalcado, como se de um espelho se tratasse. O ressentimento, ao ser para si dirigido, era ampliado pela imagem de uma matriarca que se pretendendo equitativa se tornava duplamente injusta ao parecer gostar mais do seu filho mais novo.
Com o tempo este amor indisciplinado desta mãe-galinha pelo herdeiro mais novo veio a ser um pomo diário de conflito entre marido e mulher. Apercebendo-se do exagerado mimo e do facilitismo com que a esposa dava tudo ao filho, o chefe de família cedo intuiu que a educação do benjamim iria descambar. As discussões sucediam-se. Ele dizia que se o filho mais novo pretendia determinada consola teria de a conquistar e não dava. A mulher ia por trás, à sorrelfa, e na primeira oportunidade, ou imediatamente a seguir, como que a hostilizar o marido, e dava de presente ao seu menino, coitadinho, que ninguém compreendia…só ela...porque o pariu e era mãe –atirava de chofre ao marido, na presença dos dois filhos.
Como mós de um moinho, gastas pela erosão do tempo, as relações dos cônjuges assim se foram desgastando até ficarem lisas e já não provocarem qualquer sensação de amor ou desamor. Inevitavelmente, em Dezembro último, deu-se o desenlace previsto e separaram-se. Como seria de calcular o mais novo ficou com a mãe e, Vasco, o mais velho, com o pai.
O pai de Vasco praticava motocross. Há pouco tempo, aquando de uma férias do Benjamin em sua casa, reparou na extrema habilidade do puto em conduzir motos. Ficou tão babado e contente, vendo ali o seu seguidor das lides desportivas, que foi o mais depressa possível comprar uma mota ao miúdo. Esqueceu que a dádiva de presentes gratuitos fora o motivo da sua separação. A mãe, para não ficar atrás do ex-marido, ofereceu-lhe um telemóvel “ultima geração”.
Nem um nem outro se lembrou que o Vasco existia e remoía no seu interior toda esta plêiade de agressões psicológicas à sua autoestima, há muito perdida pelos interstícios da vida conflituosa de um adolescente. Esta era a gota de ódio que precisava para fazer transbordar o copo mais que cheio de desgosto e reserva em relação a um mundo que detestava.
Três facadas, no pescoço, no peito e no abdómen, foi o epílogo duma história de final anunciado que Vasco desferiu no seu irmão mais novo. Como que, com esse acto, quisesse demonstrar o simbolismo da exterminação dos pais, sobretudo a sua mãe, e também um mundo em que se sentia deslocado e desenraizado.
Quando foi preso, fez um telefonema para a mãe que não pôde atender. À pessoa com quem falou mandou o recado: “DÍGA-LHE QUE MATEI O SEU FILHO QUERIDO”.
Quando lhe perguntaram o porquê de tal atitude primária, respondeu: "POR MUITAS RAZÕES".
(HISTÓRIA FICCIONADA PELO AUTOR. BASEADA EM NOTÍCIA DO DIÁRIO DE NOTÍCIAS DE 27 DE JULHO DE 2007)
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