Tomava o café, e ia desfolhando o jornal, quando me deparei com a notícia do teu desaparecimento. Aquele pequeno rectângulo de 6x9, tão igual a tantos outros, caiu-me no estômago como um murro desferido, sem contar, pelo destino.
Habituei-me a olhar para ti como uma árvore cansada, pelo peso das tuas quase oito décadas, mas sempre, sempre com a força anímica e sonhadora de um adolescente traquina. Tu eras duas pessoas numa só. Uma, o António, apaziguador, assertivo, calmo como uma enseada sem ondas. Sempre a ouvir e a pouco falar. E quando falavas, com aquela tua voz mansa, era sempre a voz do sábio, experiente, que se exprimia. Tu eras um especulador observativo, sempre moral, equidistante, e cumpridor. Quase irritavas pelo teu sussurrar. Era preciso estar atento para te ouvir. Mas era um gosto falar contigo António.
O outro personagem que convivia contigo, e que tu, como psiquiatra, certamente entendias, como se fosse o teu alter-ego, heterónimo, doublepersonalis, ou outro nome qualquer, era o José. Este, a metade do teu todo, era o oceano tumultuoso, o conflito entre o dever e o devir. O sonho personificado, aquele que nunca se abate, o nefelibata que vivia nas nuvens, olhando para baixo, sempre com ideias utópicas e megalómanas. Viajar contigo no carrossel da tua montanha russa da utopia era um gosto. E quantas vezes eu viajei contigo…meu amigo. O ênfase que punhas na explanação das tuas ideias, sem nada te demover. As dificuldades não te metiam medo. Contrariamente ao António, chegavas a ser amoral e revoltado contra a inépcia de quem governa esta cidade. Chegava a irritar-te a burocracia existencial de certos personagens que, como moscas em volta de um torrão de açúcar, parecem lamber o exterior sem lhes importar o âmago e a profundidade das coisas.
Habituei-me a olhar para ti como se olha para água corrente de uma fonte, que pensamos nunca secar. Pensava que eras eterno. Que essa força imanente que brotava do teu interior jamais te pregaria uma rasteira. Jamais apagaria essa chama de vida, que te consumia, como uma insatisfação crónica, uma fome que só um caminheiro sente quando percorre veredas e sendas plenas de escolhos, mas, mesmo assim, inexplicavelmente, continua a caminhar.
A Baixa está de luto, perdeu um grande amigo. Com a tua partida, sem aviso-prévio, levas contigo um pouco da sua alma que tanto amavas. Muitos de poucos te conheciam como eu. Para os muitos tu eras mais um. Para mim tu eras o paradigma do inconformismo, o lutador, o Centurião Romano, aquele que deixa um rasto por onde passa, mas só poucos se apercebem do sulco. Ainda só agora inicias a viagem e já sinto a tua falta. Tu eras especial. A Rua do Corvo já não será a mesma sem ti. O Corvo que, com tanto gosto, puseste na frontaria do Centrum Corvo deve estar triste. Perdeu um amigo. Todos perdemos um amigo. Até amanhã Cerveira. Onde estiveres descansa em paz.
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