Contrariamente ao que se possa pensar, não vou falar da menina de sete anos, nascida e, presumivelmente, vivente em Buenos Aires, na Argentina, no início da década de setenta. Esta personagem de ficção criada por Quino (Joaquín Salvador Lavado) é uma menina que, apesar da sua tenra idade, percepciona situações de injustiça e até de racismo e, de uma forma algo para o desconcertante, questiona os adultos com perguntas embaraçantes. Tão lógicas para ela mas dificeis de entender e compreender pelos adultos.
A Mafalda de que irei falar, tem oitenta anos e mora ali para os lados da Solum, em Coimbra. Cronologicamente, esta minha heroína, chamada aqui à colação, poderia ser, imaginariamente, a mãe da pequena insurrecta criação de Quino. Pelo menos no génio, no inconformismo. Quem diz que a idade torna as pessoas conformadas? Não conhecem esta minha amiga. Se a conhecessem alteravam o resultado das suas análises antropológicas e veriam, em contraposição, que a excepção não confirma a regra. Antes pelo contrário, demarca-se dela, dessa falsa regra e faz-nos acreditar que no meio da turba há sempre alguém que resiste e, sobretudo, que é diferente. Embora sendo da mesma massa humana, reage contrariamente ao esperado
A minha Mafalda, roída pelo tempo, marcadamente vincada no rosto por dezenas de rugas –poderiam ser oitenta, se cada uma corresponder a um ano de vida- é uma mulher esguia, muito magra, e muito ágil de corpo. Curiosamente, a sua mente é lesta no pensar como suporte do agir. Para além de ser saudavelmente contestatária –como gosta de o mostrar, como se esta forma de estar, este conflituoso ser, fizesse parte de um cartão de identidade e, quando é preciso, puxa dele quase com arrogância, como se, essa forma de reivindicação fosse um pulsar de vida. Como se no meio de uma imensa multidão levantasse os braços, juntamente com um grande cartaz e dissesse: “EU EXISTO... EU ESTOU AQUI E TENHO UMA PALAVRA A DIZER”.
No dia 4 de Janeiro, deste ano, Mafalda, como já fizera outras vezes, entrou no elevador dos HUC, Hospitais da Universidade de Coimbra, subiu até à Fisioterapia e bateu na porta do seu “amigo” médico fisioterapeuta.
Há vinte anos que conhecia este mestre em tratamento de doenças por métodos naturais. Desde que fora seu vizinho lá próximo do Dolce Vita. De vez em quando ia visitá-lo aos HUC e da última vez até lhe dera uma pequena prenda.
Eram, então, cerca das nove horas da manhã, desse dia quatro de Janeiro, quando bateu na porta do consultório do seu conhecido. Como este não respondesse, tornou a bater e insistiu novamente. De repente, abre-se a porta e lá de dentro sai uma besta, com a cara do seu amigo médico, com a mesma velocidade dum PitBull Terrier, lança-lhe as mãos ao pescoço, aperta até Mafalda ficar sem ar e, esta, pensar que vai morrer, exactamente, onde pensava estar numa casa de sobrevivência e nunca de morte provocada. Como animal irracional, abandona a presa, depois de a considerar dominada e entra para o seu covil, batendo a porta com estrondo.
Atarantada, pergunta, ao primeiro que aparece, onde pode falar com o Director do serviço de Fisioterapia. “É no rés-do-chão”, dizem-lhe. Mafalda foi lá. Foi muito bem recebida por este chefe de serviço. Este, apercebendo-se dos ferimentos mais anímicos que físicos da senhora, ouviu, com atenção e prontificou-se imediatamente a ajudar. Afirmou que iria falar com aquele médico de ímpetos animalescos. Nem por um momento referiu a Mafalda que esta poderia utilizar o Livro Amarelo de Reclamações.
Mafalda saiu meia vencida, mas não convencida. Do seu âmago saía um grito de revolta a clamar por justiça. Cá fora, perguntou a uma funcionária como poderia fazer para reclamar. Esta, respondendo, disse-lhe que fosse para casa e transferisse para uma folha de papel tudo o que acontecera. Também não lhe falou no livro de reclamações.
Mas se estas pessoas pensavam que, com aquele ar frágil de cana abanada pelo vento no canavial, Mafalda iria desistir, enganaram-se redondamente. No dia seguinte entregou a sua exposição escrita e foi falar, novamente, com o director de serviços. Quando este soube que Mafalda tinha prescrito o seu sentir de revolta para o papel, não conseguindo disfarçar algum incómodo, exclamou: “a senhora reclamou…?”.
Agora, em processo de inquérito, Mafalda aguarda. Com o seu ar de gozo antecipado e nariz arrebitado, remata para mim: “eles pensavam que eu era uma frágil mulher… esqueceram-se que me chamo Mafalda…a contestatária…”
Aquelas rugas no rosto estenderam-se num largo sorriso aberto, como se me dissesse, duma forma hábil e sibilina: “APRENDE COMIGO”.
Sem comentários:
Enviar um comentário