segunda-feira, 2 de julho de 2007

O VENDEDOR DE INDULGÊNCIAS

O rapaz, de cerca de vinte anos, com umas fotocópias na mão, corria como um corisco, por entre os carros. De olhos esverdeados e face alongada, deveria ser da Europa de leste. Mal caiu o sinal vermelho, sabendo que o tempo escasseava e estava cronometrado, saltou do passeio, como foguete em direcção ao céu. Por debaixo do braço esquerdo, na junção com o tronco, uma canadiana a fazer de conta de que se apoiava nela, por impossibilidade física. Mas pela desenvoltura -quem se apoiava em quem?- estou certo, era a canadiana que se apoiava nele. O rapaz, estranhamente, nem disfarçava, como se não tivesse necessidade de se esforçar nada. E, pelo que vou contar a seguir, realmente não tinha mesmo. E sendo assim, terá pensado para si mesmo: “para quê esforçar-me, se esta cambada de estúpidos me paga o mesmo? Não estarão minimamente interessados no meu trabalho cénico, mas sim em descarregar as suas consciências pesadas e olham, apenas, para o que julgam que eu seja e jamais para aquilo que eu sou. Até seria uma afronta eu estar a esforçar-me” –terá pensado o rapaz.
E, como se este pensamento fosse real, nos dois carros à minha frente, curiosamente senhoras, uma deu uma moeda, presumo que terá sido um euro. No imediatamente a seguir a mim, um Opel vermelho, talvez com mais de vinte anos, a pedir uma urgente troca por um mais jovem, a condutora, certamente nos “intas e muitos”, deu ao falso pedinte uma nota de cinco euros. Este, embora não surpreendido, como era acima da média, terá pensado que aquele “cliente” mereceria um tratamento extra e, pendurado na janela da senhora com o braço solto, vendendo uma cantilena já gasta pelo tempo, nem sequer me deu atenção e nos minutos de paragem, enquanto durou o sinal vermelho, como prémio pela generosidade da senhora, ele não distribuiu lamúrias a mais ninguém. Durante aquele curto tempo a senhora foi a sua rainha, a destinatária de uma história inventada e muito bem contada, presumo. Até consigo imaginar o rosto da senhora, tenso e pesaroso e, sem o evitar, uma lágrima a soltar-se. Logo a seguir à passagem do sinal verde, arrancámos e a senhora, certamente, já a bom chorar, deu largas à sua dor e, com um pensamento a martelar-lhe a mente:”coitadinho…este mundo é muito cruel e injusto!”
Nem por instantes se terá lembrado que acabara de ser burlada e que o seu generoso gesto, mais não era do que a expressão da sua tristeza, o retrato da sua vulnerabilidade, talvez aquela fraqueza de espírito, ainda que fruto de um episódio recente, ou a piedade de que falava Nietzch.
Porque, sem me querer armar em sociólogo, o acto de dar, não reside apenas nesta fraqueza de espírito, momentânea ou não, onde a moeda é doada com uma (in)consciência perfeita de que se está a praticar o bem, mas, também, no calculismo rasteiro, onde o exercício de dar esmola é uma espécie de expiação dos pecados terrenos, um acto de contrição, e, ao mesmo tempo, ser uma garantia de um bom lugar no céu, aliás também referida pelo filósofo alemão. Existe uma outra faceta, talvez menos estudada, nalguns “praticantes do bem”, esta menos representativa mas não menos referenciável. Dentro de cada um de nós, existe uma ponta de sadismo implícito, onde a moeda doada simboliza e fere com a mesma atrocidade dum chicote, como se com esse gesto se castigasse os inadaptados da sociedade. Mesmo sabendo, à partida, serem falsos-cromos. Como se, perante aqueles, nos estivéssemos, psicologicamente, a autoelevarmo-nos. Como a dizer: “eu sou superior a ti…não pertenço à tua classe… indigente”.
Como todos sabemos a mendicidade não é proibida. Seria bom que quem ler este texto pensasse que há casos e casos e, antes de dar, reflectisse e pensasse que o acto de dar esmola não pode ser encarado de ânimo leve, pelo menos olhe-se os olhos de quem pede e repare-se em pormenores indiciadores que podem dizer muito. A darmos a moeda como se, no fundo quiséssemos dizer:”toma, desampara-me a loja e não me chateies”. Assim a continuar, estamos a ajudar a multiplicar uma prática demasiadamente lucrativa, incomodativa e de censura social. Ao direito legítimo de, em liberdade, dar, deve contrapor-se o direito intrínseco de não dar.

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