quinta-feira, 5 de julho de 2007

A CAIXA DOS SONHOS VIRTUAIS

Amélia é uma mulher endiabrada. Para os colegas, com quem convive diariamente, esta mulher é um ícone. Quando se apercebe de um sombrio rosto, espectado nalgum ou alguma camarada sua, Amélia, com a sua vivacidade e graça natural, consegue espantar, ainda que por tempo escasso, essas terríveis nuvens negras da tristeza que, pelo cinzento palpável, anunciam turbulentas tempestades. Tem sempre uma palavra amiga, uma anedota ou até uma “estória” inventada”. No serviço público onde presta trabalho como telefonista, esta mulher, quarentona, de beleza marcante no seu rosto de olhos negros, é mais conhecida do que o presidente dessa instituição. Quase se poderia dizer, por representação simbólica, que as bases daquele edifício público não assentam no enrocamento submergidos no interior da terra. Amélia é a alma, os alicerces daquele prédio, o sustentáculo espiritual de várias dezenas de pessoas. Qualquer assunto menos ortodoxo, que se imagina mas ninguém sabe, é comum ouvir-se: “perguntem à Amélia!”. Como o seu trabalho é na entrada do edifício se, eventualmente, ela faltou umas horas para ir ao médico, a sua falta é notada naquele concentrado de pessoas, como onda de calor absorvente, de baixo para cima, e, de passa-a-palavra, é normal ouvir entre os trabalhadores: “viste a Amélia?...Hoje não veio?...Que lhe terá acontecido?”. Aquela mulher, sem o saber, tornou-se para os seus companheiros, um dicionário, uma lista telefónica, um detective, um muro das lamentações, uma super mulher que nunca se abate, que nunca cai, feita de uma matéria desconhecida, provavelmente vinda de um planeta distante. Aos olhos deles, esta mulher nunca será afectada por essa terrível doença, deste promissor século epicurista, que, como cancro social, se vai apoderando um pouco de todos nós: a solidão.
Amélia, vista pelos olhos dos seus amigos, é muito mais do que pessoa física, é um espírito de alegria imanente. Nesta percepção ilusória, fruto amadurecido de muitos anos, todos esqueceram que ela é simplesmente humana e, nessa enganosa ambiguidade, sofre de fragilidades como todos os outros. Não é difícil de adivinhar que ninguém se apercebeu da tristeza latente e continuada daquela mulher, símbolo da fortaleza existencial que todos ambicionamos ter. Mas Amélia sofre, a bom sofrer. Só um bom observador, talvez deslocado daquele universo, olhando na profundidade dos olhos negros e tristes de Amélia, pensaria estar na presença da musa inspiradora da canção de Carlos Mendes, na década de oitenta.
Mas que razão terá esta mulher para, contra todas as previsões, andar continuadamente triste? Casada há um quarto de século com um homem que a ama. Dois filhos excelentes, já arrumados na vida, isto é, casados, e um deles até já tem encomendado um netinho que já está em gestação. Profissionalmente, tudo corre sobre rodas. Cada um a viver independente na sua casa adquirida havia poucos anos.
Então não dá para perceber. Será que são problemas entre ela e o Albino, o seu marido? Mas ele gosta tanto dela. È certo que ele, resultado da atmosfera de fábrica, onde trabalha, já andou amantizado com o álcool e proporcionou muito mau ambiente em casa. Mas há três anos que não bebe. Amélia encostou-o à parede e, em forma de ultimato, sentenciou que ele só podia viver com um amor: ou a escolhia a ela ou ao álcool. E albino, ponderada e acertadamente optou por Amélia. Mais uma razão para não se entender a solidão dela. Será que é pela ignorância displicente e objectivada de Albino? Pode ser. Enquanto Amélia sempre leu a revista Maria e pelo menos um jornal diário da cidade e sempre viu muita televisão, sobretudo telenovelas, Albino canalizou toda a sua literacia para o jornal desportivo Record e nada mais. Televisão nem pensar. Mal se senta no sofá e já se ouvem uns roncos misturados com assobios e grunhidos espaçados com tremores demolidores que abanam todo o sofá. Cinema, nem pensar. A última vez que Amélia se lembra de ter ido ver um filme foi o clássico “música no coração”, com Julie Andrews, em que guarda na sua memória o extraordinário desempenho daquela belíssima artista a dançar pelas colinas de sonho com duas malas e um guarda-chuva. Lá em casa, ao fim de semana, o único a ter licença de dispensa é Albino para ir ao futebol. E a Amélia?! Imaginemos alguém a interrogá-lo. “A Amélia?!...Essa é boa…as mulheres querem-se em casa…há sempre coisas para fazer: limpezas, lavar roupas, passar a ferro, regar as plantas”, responderia, pela certa, o aficcionado do futebol.
Albino parou no tempo. É um modelo antigo de comboio a vapor. Ao mesmo lado, na mesma casa, onde predomina uma Amélia que poderia ser, homologicamente, comparada a um TGV, um comboio de alta velocidade. O problema maior é que Albino sente que, por comodismo, não consegue acompanhar a sua esposa e, então em vez de se esforçar e redobrar o vapor da sua máquina, pelo contrário tenta refrear o ímpeto do TGV-Amélia. Resultado: naquela casa vivem duas pessoas juntas, mas separadas, anacronicamente, no tempo, por mais de um século.
Para piorar as coisas, para os lados do Albino, a administração da instituição patronal de Amélia, tendo em conta os seus serviços relevantes e vendo a sua vontade de evolução, no ano passado proporcionou-lhe um curso intensivo de informática e colocou, junto à central telefónica, no seu pequeno habitáculo, um computador para que este modelo de funcionária pudesse, mais eficazmente, responder às solicitações várias, quer de utentes, quer de restantes funcionários daquele serviço público.
Amélia, com a televisão, a pequena caixa que revolucionou o mundo, já tinha passado a sua primeira insurreição dos seus horizontes, agora, com a Internet, está a viver intensamente o seu segundo movimento de transformação cultural, educacional e social.
Ao manusear, como quem diz teclar, esta pequena caixa, esta mulher voa no tempo, levita no espaço e sonha acordada. Se assim é, porque não está Amélia mais feliz? Realmente não faz sentido. Deveria estar.
Imaginariamente, se fizéssemos esta pergunta em abstracto, certamente, como fantasma materializado, alguém responderia que o conhecimento das coisas, conduz a uma obsessão em cadeia, na procura de respostas para perguntas nunca até aí imaginadas e, agora, cada vez mais prementes, onde ressalta o “porquê disto, o porquê daquilo”. Esta interrogação leva, inevitavelmente, a uma dúvida existencial que se alimenta de mais respostas e estas, por sua vez, de mais dúvidas que vão conduzir a uma insatisfação entre o que se pensa ser e o que realmente é. Para concluir, afirmaria alguém, em trejeito meio sarcástico: “felizes só os ignorantes”.
E, comparando com o mundo de Amélia, a verdade é que esta caixa de múltiplas respostas, não lhe trouxe mais felicidade ao seu universo. Antes pelo contrário. Até entrar neste reino virtual, Amélia era feliz com o seu Albino. Nunca se questionara, por exemplo, da razão de ele, quando faziam sexo, se servir dela. Sim, hoje Amélia sabe, graças à caixinha de realidades virtuais, que ele ao longo de mais de vinte anos, sempre se serviu dela. Ela nunca provara o gosto do seu gozo sexual. Nunca soubera o que era um clímax e, também, a verdade se diga, nunca ouvira falar em tal palavrão. Ele punha-se em cima dela, como se estivesse a montar para cima da burra do Zé Pileca, dava dois trotes na criatura, e, quando esta começava a ganhar gosto na corrida, mandava um grito, entre um Tarzan e um sofrido choro, acabando ali o que, nesta metáfora, nem chegara a começar para a Amélia. Na Net, ela viu que havia muito mais mundo do que aquele que imaginava, olhando, de olhar perdido, as manchas da pintura do seu quarto, enquanto fazia o frete ao seu marido, e a cama, como compincha dum ser egoísta, apenas rangia para ele, nunca para satisfação dela.
Nos primeiros dias, após tomar contacto com esta realidade, ainda tentou, com bastante tacto, alertar o seu marido para as insuficiências carnais de que sofria há mais de vinte anos. Mas este, como ameaçado, reagiu com brusquidão e Amélia nunca mais lhe pode falar em nada. Para descompensar ele cada vez mais se torna controleiro do seu espaço e mais restritivo e fechado à luz do seu conhecimento.
Hoje, nos chats, Amélia, dos olhos negros, tristes e embaciados, procura o seu príncipe que lhe proporcione o seu almejado desejo de ser feliz e, como religião pagã, possa ter o seu Carpe Diem, o gozar o dia, indo ao encontro das suas necessidades carnais e ideal de felicidade. Mas Amélia não tem tido sorte, até agora só lhe apareceram montadores iguais ao que tem em casa, habituados a montar a burra do Zé Pileca. Ela quer muito mais, quer romance e propostas de um futuro certo e menos virtual do que lhe propõem.
Hoje, mais triste do que nunca, acompanhada de amigos virtuais, mas muito mais só, em balanço de aferição, interroga-se: esta caixa extraordinária, viajante supersónica por entre continentes, contribuiu alguma coisa para a sua felicidade? Duvida.

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