segunda-feira, 28 de dezembro de 2020

UM HOMEM (IN)ACABADO

 

(imagem de Leonardo Braga Pinheiro)




No povoado rural, localizado na Beira-Baixa, a família Ribeiro, para além de contar muitos porcos, vacas e cavalos, era proprietária da maioria de terras aráveis e arbóreas em redor da aldeia e até ao Sol se perder no horizonte. O barão era o Senhor Joaquim (“Senhor” com maiúscula, como obrigava o grau de importância) e a matriarca era a Dona Francisca (para os amigos e mais chegados a Dona Francisquinha).

Como era costume em finais de 1960 e princípio da década seguinte, a multiplicação da prole era feita dentro do mesmo círculo de consanguinidade, entre primos e chegados, para não se parcelar ao desbarato a propriedade. O lema era manter e acrescentar a riqueza, jamais dividir por algum pé-rapado que se apresentasse como candidato a nubente.

Na grande sala de jantar da grande casa agrícola, decorada com longos reposteiros e cortinados de linho e vários quadros a óleo com a genealogia familiar recuada, a enorme mesa de carvalho sobressaia.

Aquela noite de consoada era especial. Com os candelabros e os talheres de prata a refulgir o crepitar das chamas provindas da avantajada lareira guardada por dois leões em pedra, os oito filhos, quatro rapazes e quatro raparigas, sete deles já arrumados com respectiva consorte e já alguns rebentos, estavam todos sentados na lateral em cadeirões com espaldar. Nos topos aconchegava-se o pater-familia e a esposa. Os muitos criados, como sombras misteriosas sopradas pelo vento, cirandavam para que nada faltasse naquela noite tão extraordinária.

Afinal não era todos os dias que se brindava ao anúncio de casamento do último filho. Hilário, para além de estar bem colocado nos caminhos-de-ferro, era um homem alto, bem vincado na personalidade e bem-apessoado na apresentação. “um pão”, como pensava a sua noiva, de maças do rosto ruborizadas, acomodada a seu lado. Etelvina, moçoila filha de boa e bastada família, virgem, com tudo no sítio, imaculada de peito erecto, era linda de fazer ressuscitar um morto.

Mas no meio daquele ruído tão próprio onde ressalta a exaltação da alegria, entre os futuros sogros de Etelvina havia um olhar de profunda preocupação. Como raios infravermelhos a atravessar aquela longa mesa, Joaquim e Francisca, volta e meia com a fronte enrugada, partilhavam um segredo que viria a mudar a vida da sua futura nora.


II


Veio a Primavera, regressaram as andorinhas com o seu chilrear de esperança, e a rua principal do povoado, com gosto e esmero, começou a ficar toda ornamentada com ramos de acácias floridas. Desde a capela até à casa dos Ribeiros, um longo corredor atapetado de flores forrava a calçada de paralelepípedo.

O enlace de Hilário e Etelvina estava marcado para um Domingo de 13 de Maio, dia de Nossa Senhora de Fátima.

Por entre o resultado da caçada ao veado e ao javali, que antecedeu o casamento, foram abatidos cinco bezerros, três ovelhas e dez leitões.

E veio o dia. Da cidade próxima sede da diocese, para celebrar a união, veio o senhor bispo. Naquele pacato lugar recôndito, onde o Sol fustiga no Verão e o gelo enregela os ossos no Inverno, nunca se viu tanta gente vinda dos lados da serra. Aparentemente a felicidade inundava todos os corações. Todos, todos talvez não. Duas pessoas, Joaquim e Francisquinha, nessa noite, não pregaram olho. Mas, porquê?

Com os noivos a serem os reis da roda, a festa prolongou-se e entrou noite dentro, muito além da meia-noite, com baile abrilhantado pelo acordeonista mais famoso das redondezas. Por entre olhares de troça e bocas de ocasião, alguns homens mais descarados interrogavam: “mas será que ele não tem pressa nenhuma de levar a noiva para a cama?

O silêncio naquele lugar sagrado, como manto diáfano, tomou tudo em redor. Desde os vivos até aos sepultados no pequeno cemitério, todos descansavam em paz.

Foi então que, por volta das duas horas e picos, gritos lancinantes ecoaram em toda a aldeia. Velhas e novas, ricas e pobres mulheres vieram à janela e exclamara: “Meus Deus! Não há dúvida, é a voz da Etelvina, a noiva! O que teria acontecido?”

O resto da noite foi todo passado em claro. A curiosidade roía os braços de Morfeu e impedia que qualquer um se deixasse embalar na mais humilde sonolência.


III


Apesar da bisbilhotice corroer a alma, ninguém ousou bater à porta da recém-casada para saber o motivo dos berros que rasgaram a noite.

Se é certo que não houve repetição da gritaria, também era verdade que aquele episódio carecia de explicação plausível. E na falta da verdade contam-se histórias picantes e inverosímeis. Aos poucos, foram-se inventando boatos que preenchiam o vazio de conhecimento. Para uns, talvez a maioria, o Hilário era extraordinariamente dotado e tinha assustado a pobre esposa, Etelvina. Para outros, a rapariga, virgem, como nunca vira um homem nu, mais que certo, assustara-se com tanto pêlo que o marido carregava no corpo e confundira-o com um macaco.

E tudo teria ficado na indefinição, não fora o caso da mulher começar a decair físico e mentalmente, dia-após-dia. No princípio mal-arranjada, rua acima, rua abaixo, passeava sozinha com os olhos virados ao chão. Progressivamente foi mudando para pior. Passou a andar acompanhada com um cão rafeiro. E sempre que um grupo de mulheres a fitava ou lhe dava a boa-sorte, Etelvina, numa fúria incontrolada, respondia: “Suas putas! Suas cabras! Quereis homem? Vinde ter com o meu burro! Ou aqui com o meu piloto!

Por vezes, quando decorria a homilia da pequena catedral, abruptamente, o cerimonial era interrompido: “hiu… hiu… Suas putas! Querem homem? Venham ao meu piloto!

Etelvina, já num completo ensandecimento, chegou a ser encontrada completamente em pelota nas ruas e becos da aldeia. Acabou por ser internada ainda nova num hospício para doentes mentais.

Veio a saber-se que o Hilário, o marido de Etelvina, quando criança imberbe, fora mordido por um porco e este animal comera-lhe completamente o pénis. Fora tudo de tal modo abafado que, para além dos progenitores, ninguém mais sabia.

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