quarta-feira, 16 de dezembro de 2020

CONTO DE NATAL: A “TI” RITA

 

(Imagem da Web)




Durante tantos anos que até lhe perdi a conta, da minha janela, eu segui os seus passos. Eles eram metódicos como um relógio suíço. De segunda a sábado eu sabia o que ia acontecer fora da sua casa. E lá dentro, no aconchego das suas quatro paredes, eu especulava com cada passo percorrido no soalho de madeira. Chegava mesmo a parecer ouvir o seu arrastar cadenciado e silencioso dos seus pés naquele chão brilhante e bem-limpo de um primeiro-andar.

Impreterivelmente, às 9h30, com a sua roupa simples e chinelas de trazer por casa, ela descia os vários lances de degraus e saía para comprar o jornal ao quiosque ali a dois passos. Uma hora depois, às 10h30, saía com o marido de mãos dadas para fazer a sua caminhada – ambos vestiam fatos de treino e calçavam sapatilhas. Pelos traços e madeixas brancas, ambos estariam aposentados.

Sessenta minutos depois regressavam ao lar. Como se eu fizesse parte de um enredo de espionagem do escritor John Le Carré, do meu ponto de observação, eu registava tudo o que via e tentava adivinhar o obscuro e imaginável.

Aquele casal no patamar dos três terços da vida era a porta de entrada de um tempo misterioso e imprevisível que se aproximava de mim a passos rápidos. Na casa do meio-século, provavelmente, em relação a eles, eu teria menos vinte anos. Aqueles cônjuges simbolizavam a paz interior que eu tanto desejava e não tinha na minha vida. Olhava para eles e, como se constituíssem um quadro realista de um bom pintor, sei lá, talvez Henrique Medina, realizava a minha catarse, método psicanalítico que consiste em trazer à consciência recordações recalcadas. Tantas vezes, olhando da minha janela, eu dava por mim a apanhar duas lágrimas rolantes pelo meu rosto ressequido de amor.

Profissionalmente, eu trabalhava em costura. Era costureira, ou modista, se preferirem por ser mais pomposo. Foi devido ao meu talento para o corte e costura que fui trabalhar para aquele estabelecimento de pronto-a-vestir e de vestidos por medida. O atelier era também no primeiro-andar. Com uma grande janela que abarcava todo o largo em frente aos meus olhos, eu memorizava cada gesto, cada sorriso dos vizinhos próximos. Era uma espécie de peça de teatro em jogo mental, em que os actores, os confinantes, logo que davam um passo em direcção à rua, antecipando-me à realidade tangível, efabulava o que ia suceder antes de acontecer.

Estou em crer, nenhum dos “vigiados”, em tempo algum, se deu conta do meu atrevimento. Um facto curioso, apesar dos anos passados na função investigadora, nunca cheguei a saber o nome verdadeiro de qualquer deles. Quando nos cruzávamos, reciprocamente, apenas saía a saudação habitual: “bom dia ou boa tarde ou boa-noite”.

Eles eram apenas figurantes de uma comédia, entre o trágico e o cómico, inventada por mim. Mas todos tinham nomes. Sem padre de paróquia, eu fazia a sua consagração. Foi assim que baptizei a “Ti Rita”.


II


Como estava na hora de almoço, antevia “Ti Rita” agarrada ao fogão. Tendo em conta que possivelmente seriam assalariados por contra de outrem, ou talvez funcionários públicos, seria, porventura, uma cozinha modesta, numa casa tradicional portuguesa, onde se viam muitos objectos pendurados nas paredes. Era como se cada coisa identificasse uma época das suas vidas cheias de pequenas coisas, e cada coisa contasse uma passagem.

Enquanto a esposa fazia o almoço, o marido, com muito carinho estaria a pôr a mesa. De seguida daria um amoroso beijo ao de leve na consorte e, pondo a rodar um vinil de Leonard Cohen no pick up. Ouvindo, absorvendo a voz rouca do canadiano, sentou-se no sofá da sala a ler o jornal do dia - fantasiava eu na minha memorial história melosa.

Quando o relógio, da marca “Reguladora”, pendurado na parede branca da sala por cima do terno de sofás de veludo, bateu as 2h30, como habitualmente, já o casal transpunha a porta de saída e o batente em ferro secundou a máquina horária de corda manual.

Como sempre, o marido, todo janota, soergueu o tronco, puxou as calças para cima na zona do cinto, distendeu o colete, ajeitou a gravata, acariciou o chapéu e deu um pequeno beijo da amor à mulher.

A “Ti Rita”, toda apessoada e produzida em quase uma hora em frente ao espelho da retrete, num relance como só uma mulher consegue, como nada disse, deu por aprovada a indumentária do companheiro. E, num passo cadenciado de militar russo, atiraram-se à rua.

Eu sabia que, com grande precisão, noventa minutos depois eles regressariam ao ponto de partida. Na meia-hora subsequente, a mulher iria estender os seus trapinhos humildes. Pela qualidade dos lençóis algo coçados e sem marca dava para ver que eram mesmo um par de pessoas simples como tantos milhares que atravessam este Portugal de norte a sul.

Uma vez por semana, junto à porta, um automóvel meio-descolorido e já cansado de rodar parava. Do seu interior, um homem na casa dos “cinquentas”, abandalhado no porte, saía e tocava à campainha. “Ti Rita” vinha à janela e debruçava-se sobre o visitante. Em seguida atirava uma chave para baixo. O indivíduo, baixando-se sobre o chão, apanhava o objecto que permitia a intrusão. Abria a porta traseira do carro, retirava uma trouxa atada com dois nós e subia as escadas de acesso ao piso cimeiro. Dez minutos depois, fazia o trajecto inverso com roupa muito bem dobrada – presumi que seria um seu filho único, sem trabalho nem vontade de trabalhar. Um peso-pesado que, parido por aquela mãe, o que os ligava era o amor incondicional e a consanguinidade.


III


Um dia, logo de manhã, fui alertada pelo som aflito de uma ambulância com o sonar ligado e a parar junto à casa da minha narrativa. Em corrida, entraram dois para-médicos com uma maca. Passados escassos minutos levaram o homem da casa para o hospital.

Passados dias, do meu ponto de observação, apercebi-me que “Ti Rita” vestia de preto dos pés à cabeça – coitada, o marido morreu!, dei por mim a lamentar e a pensar que a minha história estava quase a ver o fim.

Ainda não tinha caído uma folha anual no calendário quando, de repente, vejo a mulher, como fresca e viçosa alface, toda rejuvenescida a sair para comprar o jornal. Seria a mesma? Dei por mim, em solilóquio, a questionar os meus botões. Anda passarinho novo a fazer ninho no beiral, concluí.

Poucos dias passados, comecei a ver um carro de boa marca a parar junto à porta da velhota. O condutor, numa prestação de cavalheiro estudada em longas noites de insónia, rapidamente saía e ia abrir a porta lateral à madame.

Da minha janela, eu adivinhava o deleite da velha senhora. Entravam juntos e cerca de uma hora depois o galã, com ar um pouco ajoujado, batia a porta e seguia a sua existência no seu popó, extensão de si mesmo.

Curiosamente, o vestuário estendido a secar na roldana subiu de patamar de classe. Agora a roupa da cama era muito mais fofinha.


IV


Depois de largo tempo de rotina repetida, novamente uma ambulância estava parada junto à casa por mim inspeccionada. Sentada numa cadeira de rodas, vi então a “Ti Rita” ser transportada, presumivelmente, para ser avaliada por um médico no hospital.

Mais uma vez, arranhando na cabeça, em perspectiva, estava a ver o breve fim da minha cusquice.

Para minha surpresa cerca de uma semana após a saída da velha moradora, vi que o pequeno edifício estava parcialmente coberto com tarjetas de “Vende-se - negociação particular”, seguido de um número de telefone.

Em pensamento de epitáfio, soletrei: descanse em paz!. E fiz o funeral à minha analisada.

Passados meses, foi num Dezembro de Natal que avistei vários homens a retirarem os muitos anúncios de venda. Mais uma vez, numa conjectura tão minha, acreditei que ia ter novos locatários e, assim, prosseguiria o meu jogo.

Foi então, para minha grande surpresa, que avistei a “Ti Rita”, ainda um pouco combalida, a entrar no seu velho lar.

No quiosque dos jornais, vim a saber que o filho, dando-a como morta e falsificando documentos, esteve à beira de lhe vender o prédio.

Rematou o vendedor de jornais: “olhe, menina, foi um verdadeiro milagre de Natal a senhora ter recuperado a saúde!


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