quinta-feira, 8 de setembro de 2016

EDITORIAL: O OUTRO LADO DA “SOCIADADE” DE HOJE

(Imagem de Leonardo Braga Pinheiro)




A história conta-se de uma penada na página do “Notícias –Saciadade de Hoje”, no Facebook. Ao que parece, citando, “No passado dia 2 de Setembro, uma jovem cliente com paralisia cerebral pediu auxilio ao filho do dono da Petisqueira do Brinca (Estrada de Eiras, Coimbra), a fim de pôr a sua cadeira eléctrica à carga para conseguir chegar a casa. O mesmo negou ajuda alegando que não tinha fichas. Isto não passou ao lado de uma grande revolta por parte dos clientes que permaneciam no local. Dois amigos da jovem ajudaram-na a ir até ao Ventura Car onde não lhe foi negada ajuda. Entretanto no meio de tanta revolta, uma rapariga, também cliente, decide chamar o empregado à atenção dizendo que a cadeira eram as pernas da jovem e que não custava nada dar um pouco de energia para que a mesma conseguisse chegar a casa. Respondeu dizendo que pagava 400€ de luz. No meio da discussão e ainda achando-se com razão, o empregado agride fisicamente a rapariga, dando-lhe uma palmada na cara.
Como é óbvio, o post teve até agora 1584 partilhas, milhares de visitas e largas dezenas de comentários a pôr a baixo o estabelecimento. Desde o dono ser apelidado de parasita, gordo, otário, até chamar o restaurante de espelunca, e o empregado de “animal selvagem”, tudo é válido para ofender.
Vale a pena recitar alguns dos epítetos -que são passíveis de acção judicial por difamação agravada a pessoa colectiva, já que se trata de uma empresa: “era cagar-lhe à porta”, “Há sempre um filho da puta que se arma em bom. Havia de cair uma praga de baratas na loja que fosse obrigado a fechar. Cabrao...Esse filho da puta é que havia de estar na cadeira pra ver a falta que uma coisa desta faz.”, “Deus queira que um dia esse filho da puta não precise de ajuda!! “, “Triste mas é a realidade da vida algumas pessoas valem 0 mas Deus é grande e mais cedo ou mais tarde esse sr terá a recompensa do devino espírito santo não tem coração esse sr é um animal .“

VAMOS POR PARTES

Como ressalva, pode até parecer que estou a tomar o lugar de advogado de defesa dos autores, donos do café, e a desvalorizar a sua, alegada, falta de ajuda a alguém que necessitou. Nada disso. Não conheço o estabelecimento nem os gerentes.
O que gostaria de chamar a atenção é que, primeiro, em face de um relato que parece ser credível, mesmo que nos indigne, como juízes em causa própria, não podemos, de uma forma aligeirada, saltar a condenar e a ofender os visados. Mesmo nos casos em que tudo parece ser tão claro, como aqui, não se pode esquecer a presunção de inocência e o não fazer justiça por mão própria. Para julgar existem os tribunais. Mas até lá chegar há um processo que culmina num julgamento em que as partes, ofendido e indiciado, mostram os seus argumentos para alcançarem os seus fins.
Com esta tese quero dizer que, perante algo que ofenda os bons costumes, devemos ficar impávidos e serenos e não meter a foice em seara alheia? Não é isso. Devemos imiscuir-nos, sim. Mas, metendo a opinião na massa, devemos fazê-lo de forma correcta, abjurando o procedimento mas sem agredir verbalmente qualquer das partes em confronto. Se insultarmos estamos a fugir ao caso em concreto e a criar outro processo-crime análogo que pode dar muitas chatices a quem proferir o ultraje.
Até pode parecer que estou para aqui armado em sabichão moralista. Se parece, não é isso que pretendo. Ao dar-me ao trabalho de escrever este rol, de certo modo, é para alertar os frequentadores das redes sociais -e sobretudo os que invectivaram na página referida. Erradamente, hoje, em nome de uma liberdade de expressão que perdeu a alma, pensa-se que se pode escrever tudo o que vem à cabeça. Tem-se a noção de que as redes sociais são, por um lado, uma espécie de painel catártico, onde se pode lavar o espírito, por outro, uma terra-de-ninguém, sem lei, sem moral nem ética, que não está sujeita ao direito comum.

MAS, AFINAL, HÁ HUMANIDADE OU COMEM TODOS?

Antes de entrar no conceito de humanidade -que, pela falta, é o que está em causa-, vou plasmar esta citação de Charles Chaplin:

A humanidade não se divide em heróis e tiranos. As suas paixões, boas e más, foram-lhe dadas pela sociedade, não pela natureza.”

E agora, sim, vamos então à sua definição: “Conjunto de toda raça humana; comportamento ou natureza humana; qualidade de ser sensível ou benévolo”.
Vamos começar na qualidade de ser sensível ou benévolo. Se é uma qualidade, quer dizer que é um conceito categórico acessório e subjectivo que, embora venha de dentro da alma do sujeito, não é obrigatório à luz da lei. Está relaccionado com as percepções de cada indivíduo, na forma de ver o mundo, a preto e branco ou em outras cores vivas; como a experiência empírica foi vivenciada e ficou gravada na mente; a cultura, no contacto social, no relacionamento inter-pares através dos valores; a filosofia/versus religião, na frase lapidar “faz aos outros o que queres que te façam a ti”.
Sabe-se que quanto mais o sujeito for sensível e benevolente maior é a probabilidade de paz e harmonia ao seu redor e, por isso mesmo, o recurso à lei para dirimir conflitos será sempre ínfimo.
Uma grande parte das nossas leis foram beber os princípios ao Direito Romano, no agir como um bom pai de família, avisado, ponderado e persuasivo. Ser justo perante o bom, cumpridor, e o mau, prevaricador, cidadão.

MAS O QUE TEM A ÁRVORE A VER COM A FLORESTA?

É curioso que as pessoas que mais reivindicam humanidade são exactamente aquelas que, de uma forma brutal e sem pudor, espancam verbalmente alguém que não foi. Neste seu jeito de humanidade discutível -arremessada de atrás da cortina-, como turba sedenta de sangue, por exemplo, não são tomados de benevolência para o possível encerramento do restaurante; para a perda de empregos dos funcionários. O que lhes interessa mesmo é a destruição pura e simples de alguém que, aos seus olhos, até pode ter alguma razão -e tem mesmo. Enquanto proprietário, que paga as suas contribuições, impostos e custos de exercício, tem o direito -contrário a obrigação- de decidir se deve ou não ceder electricidade a título gratuito. Quantos seus clientes, diariamente, fazem o mesmo, isto é, pedem para ligar os telemóveis à corrente do café? É um custo ou não para o empregador?
Por outro lado ainda, o facto de a rapariga se locomover em cadeira de rodas, embora se deva levar em conta a sua deficiência, não faz dela uma irresponsável, sem obrigações. Quando ela saiu de casa não deveria ter visto a carga da bateria?

O PERIGO DA IRRESPONSABILIDADE ARREBANHADA DAS REDES SOCIAIS

Há meia dúzia de anos, na Mealhada, alguém se apercebeu que o restaurante “O Constantino” tinha, creio, nas traseiras do edifício dois cães esquálídos. Em seguida, fotografou-os e colocou as imagens no Facebook. O resultado desta “altruista” acção em defesa dos animais foi o encerramento da popular casa de leitão e a perda de cerca de uma dezena de postos de trabalho directos e outros tantos indirectos. O que tinha a ver o estado dos cães com o serviço prestado? Isto é humanidade?
Hoje a sociedade é justicialista. Por trás da sua forma de agir está um profundo revanchismo, um desejo desmesurado de vingança contra tudo e todos. Desde que não lhe calhe próximo, está sempre pronta a condenar. É uma sociedade prenhe de direitos. As obrigações são apenas para os outros.

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