sexta-feira, 16 de outubro de 2015

A SOCIEDADE IMBERBE




Há cerca de dois meses, nas instalações da antiga Rodoviária Nacional em Coimbra, agora sobre gerência da Transdev, uma multinacional francesa, duas mulheres, bem-parecidas e na casa dos sessenta e poucos anos, divertiam-se a esboroar pão e a lançá-lo para o chão onde dois pombos iam apanhando o óbolo das duas certamente cristãs e tão boazinhas senhoras. Como eram quatro mãos e somente dois animais voadores, o resultado foi um tapete de largo espectro no cimentado do centro de camionagem. Largas dezenas de viajantes, que esperavam embarcar, uns iam levando nos sapatos parte da oferta destinada às aves e outros, sentados, assistiam impávidos e serenos à manifestação de tão elevada acção benemérita. Como sou do pior, e quando vejo certos excessos que me provocam cólicas tenho de despejar, naturalmente, lancei-me às velhas –na idade pouco mais do que eu, mas isso não interessa para aqui. Assim a frio, atirei-lhes: digam-me lá, minhas gentis senhoras, acham bem o que estão aqui a fazer? Faziam o mesmo em vossa casa, na vossa sala?
Olha o que eu fui dizer. Em duo, viraram as pupilas para mim, apontaram a matraca –como quem diz a boca- e toca de dar ao gatilho: “quem é o senhor? Tem alguma coisa contra estes indefesos animaizinhos? Fazem-lhe mal? Fazem?”. É claro que não contavam que estavam metidas com um rústico, nascido e criado na aldeola, e o meu troco não se fez esperar. Mas eu era apenas um atirador solitário contra duas benfeitoras e protectoras dos animais e uma rectaguarda impassível e que nem apoiava nem o contrário. Porque entendia que era assunto que deveria meter alguém responsável da Transdev, quando passou um condutor da casa chamei-lhe a atenção para o atapetado à nossa frente. Encolhendo os ombros, arguiu que não era com ele e deu um passo em frente. A seguir, passou o anunciante das partidas de autocarro e, mais uma vez, pedi o seu reparo para o que as matronas provocadoramente estavam a fazer. O diligente funcionário, em escassos segundos, olhou para mim, olhou para as velhotas, mirou o chão e rapidamente invocou uma qualquer desculpa esfarrapada que não percebi e prosseguiu a marcha e fez anunciar nos micros a partida de mais uma camioneta para um destino que não lembro. Como não me calei, as benemerentes acabaram por desistir e, a remoer entre dentes a minha falta de compreensão e formação, afastaram-se. É evidente que, imaginei na altura, perante toda aquela assistência muda teria passado por parvo.

O TEMPO DE TUDO ÀS CLARAS

Há cerca de quatro meses, no Rio de Janeiro, num restaurante completamente apinhado de clientes, um casal, sem qualquer pudor, fez sexo perante todos. Calmamente, ambos pagaram a conta ao atónito funcionário e, mais levezinhos de hormonas, foram à sua vidinha.
Quem não se lembra das antigas cabines telefónicas nos correios e nos cafés onde se ia telefonar? Tudo isso já lá vai, a conversa perdeu a privacidade e passou a ser de todos. Agora, seja no autocarro, na rua, no cinema –apesar da recomendação em contrário-, na reunião, o particular promiscuiu-se, abandalhou-se, e passou a público.
Nada parece mal. Desde o embriagamento geral dos jovens, em orgias etílicas, até ritual de praxes onde o perigo de morte está presente, tudo tem cabimento na nova ordem mundial do “vale tudo em nome do nada”! Tudo passou a ser relativizado neste tempo dos “monstrinhos” à solta.

O MUNDO AO CONTRÁRIO

Como a sociedade, em nome de uma democratização de carneirada que leva à infantilização, perdeu o sentido da moral e da ética, não sabendo distinguir o bem do mal, o bom-senso do absurdo, o Estado foi chamado a legislar sobre tudo o que deveria, por direito e obrigação, caber à família e, individualmente, a cada cidadão responsável. É assim que se promulgam leis sobre o que cada um deve comer com mais sal ou menos, sobre o fumar, sobre ceder o lugar a uma grávida ou idoso num autocarro, punir a violência sobre os mais velhos e por aí adiante. Chega-se a pedir uma lei específica para os alunos que agridam professores. Não deveríamos antes defender um comportamento social e responsabilizações colectivas? E pugnar por uma protecção intrínseca dos princípios e valores e dos bons costumes por parte de todos, mas sobretudo, dos mais velhos, que, embarcando no facilitismo, perderam essa capacidade de vigilância?


TEXTOS RELACIONADOS

"Uma sociedade judicialista"
"Que juventude queremos?"
"O outro lado do 25"
"A mulher que já não sonha"
"O tempo da futilidade"



Sem comentários: