quarta-feira, 13 de agosto de 2008

PENSAR A RIR DE COISAS SÉRIAS...




Há bocado estacionei o meu popó num parque gratuito, junto ao Estádio Universitário, em Coimbra . Há muitos anos que conheço o arrumador (residente) daquele parque. Foge um pouco ao estereótipo comum. É um homem de cerca de 40 anos, bem vestido, de tez rosada e de constituição física robusta. Hoje vestia uma t-shirt azul e uns calções tipo bermudas. Não fosse o boné na cabeça, com a chapa de arrumador, e dir-se-ia um qualquer turista em trânsito.
Quando procurava um lugar, logo ele, solícito, aproximou-se, em passo de corrida, levou-me até um lugar vago. Pelo gesto, senti-me na obrigação de o recompensar e dei-lhe uma moeda. Foi então, sem que inicialmente eu não percebesse porquê, que, em altos gritos, ele soltou um chorrilho de pragas: “vão trabalhar malandros! A culpa não é vossa, é do governo, que vos dá o Rendimento Social. Vão para as obras! Aqui não se vende droga!”. Depois, já mais assertivo, vira-se para mim e exclama: “Homessa!, há tantos anos aqui e agora vem para aqui estes mostrengos”.
Se inicialmente eu não percebia nada, e com os meus botões pensava: o homem passou-se dos carretos, deve ser do sol, se bem que, diga-se, o astro-rei, neste Agosto, até está demasiado complacente com os humanos. Foi então que, olhando para o lado, me apercebi da razão da ira do arrumador. Estava ali o busílis de se sentir ameaçado. O seu espaço territorial, o seu universo, tinha sido invadido por dois rapazes na casa dos vinte e poucos anos, presumivelmente toxicodependentes. Um, pelo aspecto, seria declaradamente. O outro deixava dúvidas.
À medida que eu contornava o meu carro, ao meu lado, o arrumador residente, não sei se talvez por se sentir mais forte, continuou a agredir verbalmente a concorrência. Agora já lhes oferecia pancada: “saiam daqui seus caramelos antes que eu perca a paciência e vos parta o focinho”, vociferava o homem. O invasor com melhor aspecto, na maior das calmas, respondia: “isso é o que tu querias, mas não és capaz! Mandas-me trabalhar? E tu, com esse arcaboiço todo, que é que fazes aqui?”
A verdade é que a calma do rapaz devia ter desconcertado o residente e reparei, que á medida que vociferava, ia, sorrateiramente, se deslocando, não fosse o diabo tecê-las.
Paulatinamente, fui-me afastando e fui a pensar neste incidente. Quantas vezes, acusando os outros de usar os mesmos métodos que empregamos, porque nos julgamos melhores, naturalmente, achamos que estamos certos. O mal e o erro é sempre dos outros.
Para uns, somos uma ideia, um projecto, daquilo que gostaríamos de ser. Por um lado, vivemos permanentemente no passado. O passado é assim uma espécie de espelho onde reflectimos toda a nossa existência. Quando temos consciência da nossa imperfeição, da nossa finitude, enquanto seres mimeticamente iguais a outros como nós, neste espelho, como folha de balanço dividida entre o “deve e o “haver”, analisamos todos os nossos actos, as nossas acções, boas ou más. Através dessa percepção intuitiva será possível tornarmo-nos melhores amanhã. Quem assim procede sabe, e sente, que o bem, para além da felicidade que proporciona a quem o recebe, dá um imenso bem-estar a quem o pratica. E, se na aparência, isto são lamentos de conversão religiosa, é puro engano. Antes das religiões havia o homem, e este sentimento é imanente à sua condição antropológica.
Para outros, que não perdem tempo a pensar nisso, acham que tudo o que fizeram foi sempre a consequência dos actos dos outros. Como autómatos, narcisistas individualistas, caminham na vida como se fossem os bons. Para estes a sua vida projecta-se no futuro. Para eles não existe arrependimento ou contrição. Não partem nem repartem. Vivem de si e para si e alimentam-se da vingança. Pagam sempre o mal em dobro. Projectam no seu semelhante a sua frustração e insatisfação. O próximo é o culpado de tudo. Do seu insucesso, na escola, nos negócios, nas relações. No limite podem acusar Deus. Barafustam com o Mestre. Afinal até vão à missa e, quase sempre, dão uma moedinha ao indigente à porta do santuário. Quando este, passando a bola, retribui “que Deus lhe pague senhor!”, imediatamente, para estas pessoas, o Criador fica em dívida. Por isso não entendem o incumprimento.
A vingança é, sem sombra de dúvidas, o acto mais rasteiro e mesquinho de qualquer ser humano. Quem não é capaz de perdoar, e, por outro lado é alguém que permanentemente se auto-desculpabiliza, é uma pessoa perigosa. Dessa pessoa, a qualquer momento, podemos esperar tudo.
E, afinal, conhecemos tantas pessoas assim, não é?

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