(Capela de Várzeas)
Quando comecei a escrever estas pequenas
narrações não fazia a mínima intenção de passar da primeira. Porém, como
qualquer caminhada que começa no primeiro passo e tantas vezes sem termos
planos para irmos além, como forças ocultas do destino ou do pragmatismo, somos
empurrados a continuar. Umas vezes, sem o querermos, porque é impossível recuar
numa “decalage” sem freio. Como no meu
caso, outras vezes, acabamos por, quase obsessivamente, entrarmos dentro da “estória” e, como mensageiros de pessoas
que em vida nos marcaram e não deixaram sinais escritos da sua passagem
efémera, trocamos o lugar de narrador por apóstolo da vida passada. Como
garimpeiro em busca de mais e mais ouro, o "continuum"
tomou conta de nós. Falamos com alguém que nos fala de outro alguém, que por
sua vez leva a outro que o marcou imenso, e está iniciado o rol da contagem
crescente pelas existências decrescentes.
Foi assim que, numa conversa informal em
Várzeas, se falou do falecido “ti”
Manel, sapateiro. Em anterior apontamento já tinha escrito sobre ele e a
esposa, também desaparecida deste mundo dos vivos, a “ti” Maria do Céu. Eram pessoas muito boas, quer um quer outro. Mas,
como eu saí daquela aldeia com mais ou menos três anos, deixando a convivência
diária dos autóctones, perdi muito conhecimento pessoal, no entanto, quando lá
regressava, lembro-me, era muito acarinhado por todos. Por isso mesmo apenas
via um lado, digamos formal, das pessoas. Praticamente não as conheci no
dia-a-dia, no seu modo de viver a aldeia, na paz pachorrenta de um tempo que não
volta mais.
Então, como dizia em cima, em conversa, vim a
saber que o “ti” Manel, sapateiro,
era um sujeito extremamente divertido. Com a sua voz palheta, de cana rachada,
sempre de resposta pronta na ponta da língua, este homem simples, com a sua
mercearia e taberna ao cabo da mesma artéria, junto ao largo da capela, onde normalmente
estava a esposa, e a sua oficina de artífice de solas e cabedais a meio da rua
principal do lugar, onde residia. Como toda a gente sabia da sua simpatia e
facilidade de comunicação, era normal, junto à janela do seu “metier”, juntar várias pessoas para cavaquear.
Ele, já habituado a trabalhar com as mãos, a coser e a colar alpercatas, não se
deixando distrair, acompanhava qualquer conversa por entre um esticar de linha
e o passar da agulha.
Ao que parece, de vez em quando
lá vinha uma patifaria, como não podia deixar de ser.
Outro costume deste simpático artífice,
que dava um fartote de rir a quem sabia, era o olhar fixamente,
olhos-nos-olhos, sobretudo as moças casadoiras e, num diagnóstico implacável e
de quem sabe o que diz, atirava: “menina,
tu estás cheia de gaifanas!”. As miúdas, aterradas de medo pelo ar cáustico
do sapateiro, interrogavam: “gaifanas? O
que é isso? É grave?”. Então o “ti”
Manel, com ar matreiro, puxava de um alicate e arrancava um ou outro pelo das
sobrancelhas e fazendo com que as moças gemessem de dor. Outras vezes, segundo
a minha fonte, mandava-as apanhar gambozinos.
Um dia mandou a Cidália, do Salgueiral, com um poceiro de vime (unidade de
medida usada nos campos correspondente a cinco almudes), para a saída de água
do moinho e para que ela apanhasse aqueles estranhos seres misteriosos. Como a
água saía em folículos, a rapariga, depois de uma tarde à espera sem sucesso,
saiu de lá toda encharcada. Nesse dia foi o gozo de toda a aldeia.
Para além destas pitorescas partidas, fruto da
ignorância própria daquela época de 1960, havia muita dureza com as crianças
mais carenciadas. Contou-me o João, o “Tripeiro”,
como, nessa altura, era conhecido na zona, que naquele tempo, em Várzeas, os
lavradores mais abastados abriam grandes poços para concentrarem a água para as
regas dos campos e, para rentabilizar, colocavam lá peixes. Então o meu amigo “Tripeiro”, vindo da aldeia dos Moinhos,
descia e juntava-se ao “Xico da Avó”
e ao José “Maloio”. Como em casa
rareava o necessário para satisfazer o estômago, trazia broa e sal e juntos,
nos campos e onde calhava, apanhavam umas cebolas para comerem. Tinham por hábito,
sempre que podiam, apanhar peixes nos poços de água. Um dia, conta o João,
tinha então 10 anos, a GNR foi resgatá-lo a sua casa, sobre prisão, aos
Moinhos. A sua mãe, que mesmo pouco sabendo do entendimento das leis, percebeu
imediatamente que se estava a cometer uma atrocidade, uma injustiça, e não foi
de evasivas: toca de se virar à paulada aos guardas. Foram todos para o posto
e, se quanto ao comportamento da mulher-mãe houve alguma contemplação, o mesmo
não aconteceu em relação ao filho João. Nem pensar em perdão. Foi apresentado
ao juiz, julgado e condenado a multa. A mãe teve de desembolsar cerca de
setenta escudos. “Tempos miseráveis
aqueles!” -exclamou o João, engelhando a cara, abanando a cabeça e fazendo
esforço para que uma lágrima vadia não viesse mostrar que um homem também chora.
Hoje, a trabalhar na Suíça e muito bem colocado, lembra estes pequenos pedaços
de vida. “Afinal todos temos uma
história, não achas?”, interroga-me em pergunta de retórica.
1 comentário:
Olé varzeas!!!!!!
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