(IMAGEM DA WEB)
1º CAPÍTULO
Consideremos que a história que vou contar é uma novela portuguesa.
Começa no dia 1 Dezembro de 2006. Passando o facto de ser o dia comemorativo da Restauração, era uma tarde igual a tantas outras, tão própria de um Inverno que se aproximava com pezinhos de lã. Embora sendo feriado, por ser mês natalício, o comércio de rua estava todo aberto, em busca de conseguir uma esperança há muito perdida.
Na Rua dos Gatos, ali mesmo junto à Portagem, o João Braga estava atrás do balcão, na sua loja de retrosaria. De vez em quando olhava a porta à espera de ver entrar um cliente. E se ele precisava de facturar! Tinha adquirido o prédio há poucos meses, endividando-se para o resto da vida. Mas quem não arrisca não petisca, pensava com seus botões. O seu rosto estava sombrio. De manhã acordara algo sorumbático, como se no seu íntimo adivinhasse que algo estava para acontecer. Volta e meia lá vinham os pensamentos negros e ele, como se os corresse à vassourada, pensava:”xô, vai-te embora desgraçado!”
Certamente, esta reflexão vinha do facto de dois prédios em frente ao seu estabelecimento estarem em risco de ruína. Embora não pudesse evitar olhar para lá, de hora a hora, estava mais ou menos descansado. Afinal, uns dias antes a divisão camarária, tutelada pelo vereador da habitação, tinha afastado o cenário de desmoronamento. E também um organismo pertencente à Universidade de Coimbra (UC) tinha classificado a segurança de um dos edifícios com nota quatro, numa escala de zero a cinco. Este estudo, realizado pela UC em 2005, chamado de SIGURB, tinha como objecto estudar exaustivamente as patologias apresentadas pelas centenárias construções da Baixa de Coimbra.
Na altura, segundo o vereador Pina Prata, este estudo terá custado à autarquia cerca de um milhão de Euros.
Ora, se assim era, porque raio haveria de estar o João Braga preocupado? “Tolices”, pensava ele em solilóquio.
De repente, sem se fazer anunciado, um ruído, em forma de estalar de elementos, invade o seu espaço, torna-se ensurdecedor, e o João ficou preso na sua loja no meio de escombros e muito pó. Os dois prédios tinham desabado completamente na sua frente. Vieram muitos bombeiros, e talvez com a ajuda de "Todos os Santos", dia que se venerara um mês antes, revolvendo toneladas de entulho, por milagre, ninguém morrera. Pelo menos quatro prédios à volta desta hecatombe, incluindo o do João, sofreram anomalias na sua estrutura.
No dia 5 do mesmo mês de Dezembro, no Jornal Público, João Rebelo, vereador com o pelouro das Obras Municipais da Câmara Municipal de Coimbra, quatro dias depois da derrocada que abalou a cidade, afirmava o seguinte: “Face à degradação dos centros históricos, não é possível imaginar que a sua reabilitação se pode fazer apenas com os mecanismos existentes. Tem de haver uma acção forte por parte do Estado e temos de criar mecanismos desburocratizados, muito operacionalizados, de intervenção (…)".
Nos dois edifícios que ruíram, para além das perdas patrimoniais dos proprietários, havia duas lojas de comércio, cujos arrendatários comerciantes perderam tudo. O nosso amigo João, por motivos causais, ficou temporariamente impedido de exercer a sua actividade devido ao desmoronamento. Tudo o que estava dentro da loja se perdeu, devido ao pó.
Claro que depois de ler as declarações de João Rebelo no Público, João ficou mais descansado. Afinal, as instituições, representadas por pessoas, servem exactamente para acorrerem a situações de calamidade, e, certamente, no que respeitava ao seu caso, a autarquia iria ser célere.
Da parte da entidade administrativa que gere a cidade, informaram-no de que as obras no seu prédio teriam de ser obrigatoriamente feitas pelos serviços camarários. Segundo o João, foi apenas isto que lhe transmitiram. E João, confiadamente, ficou à espera.
Começou a ficar de "pé atrás" quando o executivo municipal, sob proposta do ex-vice-presidente Pina Prata, recusou atribuir uma indemnização a estas infortunadas pessoas. Pina Prata mostrou uma sensibilidade e sensatez que faltou à maioria.
Passados mais de três meses, o estabelecimento de João continuava encerrado e com as necessárias obras por iniciar. Aflito com a sua situação financeira, começou a pressionar os serviços administrativos, mas, entre desculpas de que os estudos estavam a decorrer e de que rapidamente tudo se resolveria, o tempo passava. Tendo dúvidas se era gente com direitos, várias vezes se sentiu coisa. Como bola de pingue-pongue era jogado dentro do paço do concelho, de engenheiro para arquitecto, ou vice versa. Só retomou o seu prédio passados sete meses. E não se pense que as obras necessárias eram por aí além. Nada disso! Tratava-se apenas da consolidação da fachada, nomeadamente uma ombreira de uma porta e revestimento de paredes.
2º CAPÍTULO
(UM ANO E MEIO DEPOIS)
No dia 13 de Maio de 2008, o Diário de Coimbra (DC), em título de "caixa alta", na primeira página, anunciava: “INQUÉRITO À DERROCADA ILIBA AUTARCAS E FUNCIONÁRIOS”. Em subtítulo reforçava: “Prédios da Travessa dos Gatos caíram há ano e meio”. Continuando a citar o DC, “Segundo o juízo da inquiridora, “não houve, no caso, por banda dos funcionários ou agentes do município, a violação de deveres gerais ou especiais, decorrentes das respectivas funções, que possa dar azo à instauração de processo disciplinar. Por outro lado, e agora no que respeita à actuação dos órgãos municipais, bem como dos seus representantes, também não se afigura possível imputar-lhes o cometimento de qualquer ilegalidade”, assumiu a inquiridora Sílvia Serens, directora do Gabinete Jurídico e de Contencioso da autarquia.
Saliento que os vereadores do PS votaram contra, nomeadamente Fernanda Maçãs, questionando a independência e o facto de a inquiridora, para além de ser funcionária camarária, várias vezes, naquele documento, mencionar o “estado de alerta que não foi decretado, embora com a anuência de todos os responsáveis envolvidos que entenderam não ser necessário”.
Afirmou Luís Vilar, vereador do PS: “a relatora vai ter de rever quando diz que é um caso de protecção Civil”.
Continuando a citar o DC, “recorde-se que um dos edifícios estava a ser reparado três dias antes da derrocada. Três residentes foram realojados por questões de segurança, devido ao perigo de desabamento, que foi, inicialmente, afastado por técnicos da câmara, mas confirmado, posteriormente, pelo desabamento”, concluía o jornal.
(PAUSA PARA DESCANSAR OS OLHOS)
3º CAPÍTULO
(RETOMANDO O FIO AO NOVELO OU À NOVELA)
Ontem, dia 1 de Julho, João Braga recebeu do Departamento de Habitação, da Câmara Municipal de Coimbra, a seguinte notificação:
JOÃO BRAGA
…COIMBRA
ASSUNTO: REFORÇO ESTRUTURAL DA RETROSARIA ZIG-ZAG
Vimos desta forma informar V. Ex.ª da cessação da posse administrativa do edifício sito em Coimbra na Rua dos Gatos e Rua Sargento Mor, propriedade de V. Ex.ª que nos termos do artº 107º do Decreto-Lei nº 555/99, de 16 de Dezembro, alterado e republicado pela lei 60/07, de 4 de Setembro, caduca com a conclusão da obra coerciva.
(…) apurados os custos da estabilização estrutural e posterior demolição das paredes e remoção do entulho no 1º andar, este último executado por administração directa, estão contabilizados 16.806,97 Euros.
Assim nos termos do citado diploma, notifica-se V.Exª para num prazo de 20 dias, a contar da presente notificação, proceder ao pagamento das despesas realizadas no valor de 16.807,97 Euros.
Com os melhores cumprimentos,
A Directora do Departamento,
(segue-se a assinatura)
4º CAPÍTULO
TOMEMOS EM CONTA ALGUNS PRESSUPOSTOS:
1º- Vamos analisar o Decreto-Lei 555/99, artº 107º, de 16 de Dezembro e transposto, sem alterações para a Lei 60/07, de 04 de Setembro:
Posse administrativa e execução coerciva
1- Sem prejuízo da responsabilidade criminal, em caso de incumprimento de qualquer das medidas de tutela da legalidade urbanística prevista nos anteriores o presidente da câmara pode determinar a posse administrativa do imóvel onde está a ser realizada a obra, por forma a permitir a execução coerciva de tais medidas.
Analisemos o anterior artigo o 105º, ponto 3:
Tratando-se de obras de urbanização e de outras obras indispensáveis para assegurar a protecção de interesses de terceiros ou o correcto ordenamento urbano, a câmara municipal pode promover a realização dos trabalhos de correcção ou alteração por conta do titular da licença ou do apresentante da comunicação prévia, nos termos dos artigos 107º e 108º.
a)- Na minha modesta apreciação ressalta à vista uma premissa essencial para que seja declarada a posse administrativa e execução coerciva:
“assegurar a protecção de interesses de terceiros (ou o correcto
ordenamento urbano)”
b)- Para dar cobertura a esta intenção do legislador, tendo em conta, neste caso concreto, que aqui o objecto será "assegurar a protecção de interesses de terceiros". Ora, não alcançando outros interesses, no caso em apreço, seria necessário que o prédio da Retrosaria ZIG-ZAG estivesse em estado lastimoso de ruína iminente, que pusesse em perigo a vida de terceiros.
É evidente que não era o caso.
O que torna improcedente, ilegítima e precipitada a declaração de posse administrativa por parte da autarquia de Coimbra;
c)-Mesmo vindo a considerar o acto improcedente a posteriori, o autor administrativo, neste caso a autarquia de Coimbra, é obrigado a comunicar ao visado dono da obra a sua deliberação e subsequente custo financeiro a seu cargo.
Segundo João Braga, “a Câmara apenas me comunicou, por escrito, que eram eles que iriam fazer as obras, mas nunca me falaram que eu iria pagar o restauro do prédio. Se eu soubesse isso, uma vez que, quanto a mim, não oferecia ruína eminente -o dano maior foi um pilar de uma porta-, eu teria tomado as obras a meu cargo!".
5º CAPÍTULO
AINDA QUE PEQUE POR SER UM JUÍZO DE VALOR, E OS FACTOS POSSAM NÃO ESTAR A SER TOTALMENTE APRESENTADOS E FUNDAMENTADOS, UMA COISA SALTA À VISTA E MAIS UMA VEZ SE PROVA AQUI QUE A AUTARQUIA, PERANTE A DESGRAÇA ALHEIA, PROCEDE COMO UMA MÁQUINA INSENSÌVEL E INFERNAL. E ESTA FRIEZA, PRÓPRIA DE PESSOAS SEM CORAÇÃO, DEVE-NOS, NO MÍNIMO, DEIXAR A PENSAR.
AMANHÃ PODERÁ SER UM DE NÓS.
6º CAPÍTULO
(05 de Julho de 2008)
Em Segunda conversa com o João Braga, e após insistência, este confirma ter recebido uma comunicação escrita, por parte da Câmara Municipal de Coimbra, mostrando o total acima indicado. Porém, convictamente, reitera que nunca o informaram que este montante seria da sua responsabilidade. Será verdade? Não será?
Verbera que lhe disseram que as obras eram obrigatoriamente da responsabilidade da câmara e que a ele correspondiam as janelas e a pintura da fachada, “era pegar ou largar”, foram as palavras dos técnicos autárquicos, alega o comerciante.
Este pequena alteração, ainda que importante, não retira o húmus da insensibilidade de quem tem obrigação de zelar por quem precisa, neste caso o cidadão em geral, e que, no dia-a-dia, deveria ser o "modus vivendi" de quem gere uma cidade.
NOTA DE RODAPÉ
O que aqui é escrito é com a convicção de verdade e sempre, sempre, com o princípio da ética, do respeito e da responsabilidade. Como não tenho possibilidades de contraditório, tomando em conta apenas as declarações de uma das partes, pode acontecer estar a descrever apenas uma parte dos factos. Uma coisa o leitor pode estar certo: sempre que me aperceba de alguma incorrecção, retratar-me-ei seguidamente.
Eu não faço política partidária. Demarco-me dessa guerra. Isto é, não digo mal, apenas por dizer, tendo em conta interesses calculistas e obscuros. Escrevo se realmente entender que é uma clamorosa injustiça e uma arbitrariedade da administração pública ou de qualquer outra entidade privada.
Acima de tudo, procuro não me deixar manipular. Confesso que não sei se consigo. Mas pelo menos tento.
FIM
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