terça-feira, 22 de julho de 2008

HISTÓRIAS DA MINHA ALDEIA (27): O MEU AVÔ FRANCISCO

(UMA CASA ANTIGA DE BARRÔ)

O meu pai, enquanto viveu, raramente falava do seu progenitor e, no limite, quando o fazia era sempre para se lhe referir como um mau exemplo. Quando eu lhe chamava a atenção para o facto de trabalhar muito, e de que deveria descansar mais, era costume, responder por entre dentes, meio zangado, a resmungar, de que tinha de labutar, os tempos futuros que aí vinham poderiam ser muito maus. Então, em conclusão, interrogava: “Queres que eu seja como o teu avô, queres? Foi um dos homens mais rico da aldeia e desbaratou tudo. Sabes que até esta pobre casa, em que vivemos, tive de a comprar ao tribunal, em praça?”.
Como o meu avô Francisco morreu dois anos antes de eu nascer, em 1954, em boa verdade, nunca tive muita curiosidade em esmiuçar as memórias relativas à sua passagem por esta vida. Já da minha avó Angélica, apesar de ter falecido, com cerca de oitenta anos, mais ou menos, quando eu teria uns sete anos, lembro-me perfeitamente dela. No fim da sua vida, psiquicamente não estaria bem. Apesar de se locomover perfeitamente não tomava banho e falava sozinha. Gesticulava como se, através de retórica, se dirigisse a uma plateia. Para além disso, levava para casa, e guardava no seu quarto, todo o tipo de lixo que encontrasse na rua. Hoje, sei que sofria da síndrome de Diógenes, que consiste na exagerada acumulação de objectos sem valor.
Quando comecei a escrever estas pequenas “estórias” disse para mim mesmo que iria saber mais coisas acerca do meu avô Francisco. Qual era a sua posição social na aldeia? Seria verdade, como dizia o meu pai, que fora muito rico e acabara na miséria? Para saber informações nada melhor do que contactar a pessoa mais idosa do lugar e foi o que fiz. Falando com a senhora Lucília Dias, que, no próximo dia 19 de Setembro, fará um século de vida, fiquei a saber que, tal como referia o meu pai, os meus avós paternos foram realmente muito ricos. Pertenciam, por laços de família, aos agricultores mais abastados de Barrô. Mas como a riqueza é de quem a poupa e gere e não de quem a herda, infelizmente para eles e todos os seus descendentes, acabaram perdendo tudo. Até o respeito dos outros e a dignidade como é hábito. A comunidade não enaltece os perdedores. Prefere um rico através de ínvios meios duvidosos, à custa de sangue alheio, a um falhado negociante, mesmo que o fracasso se deva à sua honestidade. Evidentemente que não fora este o caso.
Dona Lucília, em conversa comigo, relembra os muitos e muitos anos que trabalhou naquela outrora grande casa agrícola. Ora trabalhava nos campos, ora cuidava dos filhos e nas limpezas da casa. Para além dela haviam vários serviçais.
Segundo as suas palavras, “os teus avós fugiam do trabalho como o diabo da cruz. Nunca se agarravam ao verbo. Só mandavam fazer e mal. E, é claro, tal como hoje, o exemplo deve vir de cima, e criado mal mandado é trabalho desperdiçado”. Depois, como havia pouco dinheiro, para além de pedirem empréstimos a particulares, começaram a não pagar as contribuições, veio o Estado e, por arresto, vendeu todas as propriedades em hasta pública. Nem São Sebastião (o Santo padroeiro da aldeia) lhes valeu!”
Continua a minha conterrânea, “como ficaram sem nada, sem terras, e não tinham crédito, passavam fome como ratos. Muitas vezes, mesmo apesar de eu ser pobre, lhes matei a fome. Tristes tempos que até me dá mágoa em recordar. Coitado do teu avô, teve um triste fim. Um dia, estando a trabalhar à jorna em Vila Nova de Monsarros, ia atravessar um pequeno riacho, que não teria mais de 10 centímetros de altura de água, escorregou, bateu com a cabeça numa pedra, perdeu os sentidos, e ficou com a boca dentro daquele pequeno fio de água. Morreu afogado e, no cemitério local, lá foi sepultado em campa rasa. Triste sina aquela do teu avô Francisco. Até parece que as pessoas nascem com o destino marcado para o sofrimento. Nem na hora da morte têm sorte!”, termina esta narração com uma imprecação que faria corar uma qualquer menina puritana.

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